De olho na mega da virada




O que abunda na Internet é ctrl+c/ctrl+v. O que carece é “ctrl+o”riginalidade. Nem que seja em nível mínimo. Já convivo bem com a idéia que originalidade total é algo negado enquanto atributo de uma obra qualquer. O que ainda não se viu sob o sol (Ecl 1, 9)?  O que não chega até nós seja por tradição, herança ou mesmo atavismo?

A intenção inicial, por princípio, era fazer do Despertador um lugar (ou não-lugar) de prática e esforço por um mínimo de originalidade. Ou seja, um blog que evitaria ao máximo o ctrl+c/ctrl+v em seu fazer literário. Porém, existem certos escritos, outros escritos, escritos de outrem, tão significativos e tão oportunos, que é mesmo o sr. Bom Senso quem nos obriga a sermos flexíveis com nosso princípio básico de trabalho.

O texto abaixo, escrito em dezembro de 69 (claro, por Nelson Rodrigues), seria dirigido hoje, provavelmente, ao Eike Batista, no que eu dedico, ad hoc, aos futuros felizardos da megassena da virada. A leitura é agradabilíssima, como já era de se esperar de um texto do anjo pornográfico. Comentá-la(o), evidentemente, é mais uma tentação rodriguiana. Todavia, para não tomar o tempo do leitor, posto que deve dedicá-lo sem mais delongas à coluna transcrita abaixo, deixarei minhas considerações para o devido lugar, o debate com os amigos nos comentários de fim de página.

CARTA AO MILIONÁRIO BRASILEIRO
Nelson Rodrigues
1
Meu caro milionário paulista. Não, não. Melhor será dizer: brasileiro. Meu caro milionário brasileiro: em primeiro lugar, devo dizer-lhe que não sinto nenhum preconceito contra o rico. Fica-lhe muito bem a sua fortuna e vou-lhe dizer mais: desejo do fundo da alma que você tenha uma casaca. Se a tem, creia-me: está justificado o fato de você ter nascido.
2
Nem pense que a casaca seja um dado frívolo, intranscendente. Sabe você por onde se demonstra o nosso racismo jamais confessado? Por um fato muito mais dramático do que se imagina: até hoje, não se viu um preto brasileiro de casaca. Não importa que os nossos sociólogos ponham a mão no fogo por uma democracia racial que nunca existiu. Primeiro, a casaca; depois, a sociologia.
3
Mas como ia dizendo: não tenho o preconceito contra a fortuna e tenho o preconceito oposto, ou seja: contra a miséria. Entendo que o Dom Hélder ame a miséria, ame a mortalidade infantil, ame a fome. Tudo isso é o seu ganha-pão. Por uma questão de sobrevivência e de turismo (ele, que viaja tanto), interessa-lhe que o Nordeste apodreça de fome infantil e adulta. Mas eu quero, inversamente, a multiplicação dos ricos.
4
Está escrito que é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus. Escrevo isso e já uma dúvida me ocorre: será “fundo de uma agulha” ou “buraco de uma agulha”? Em ambas as hipóteses, tanto faz. Não sei se é católico e, em caso afirmativo — que tipo de católico? No passado, o católico era simplesmente católico. Mas hoje tudo mudou. Os “padres de passeata”, ditos “progressistas”, questionam todos os dogmas e, até, acham graça nos dogmas. Uns são católicos-marxistas, outros católicos sem vida eterna, e ainda outros “católicos-maoístas'“, ou “católicos-fidelistas” etc. etc. Só não são católicos.
5
Se meu caro milionário está na linha de D. Hélder e Dr. Alceu, a história do camelo e da agulha não passa de fábula de “gibi”. Mas quero crer que você seja um católico de verdade e não dos falsamente chamados “progressistas”. E, nesse caso, entre o efêmero e o eterno, você terá escolhido a eternidade.

6
Mas pergunto: entrará você no reino dos céus? Façamos aqui uma breve meditação sobre o seu destino efêmero e o seu destino eterno. Na Terra ou por outra — no Brasil, ser rico é um risco. Duas forças o ameaçam: de um lado, o comunismo; de outro lado, o anticomunismo. O que o salva do comunismo é o comunista. Com que inépcia, cegueira, obtusidade, irrealismo, alienação o comunista liquida o comunismo.
7
Resta o anticomunismo, que, por um ressentimento ingênuo, também não gosta dos ricos. Outro dia, dizia-me um milionário: “Ainda vou-me disfarçar de ceguinho.” Não brincava. Falo muito no ceguinho da Rua do Ouvidor. É o que toca ao violino sempre o mesmo tango: “La Cumparsita”. E o meu amigo milionário, nas suas fantasias, imagina-se de óculos escuros, bisando eternamente “La Cumparsita”. Gemeu: “O ceguinho da Rua do Ouvidor está muito mais seguro do que os milionários do Brasil.” Certamente, há, no seu pânico, um relativo exagero.
8
Eu me pergunto se você será ou não um herdeiro. Fez a sua fortuna ou se a recebeu, de graça? Em ambas as hipóteses, não há mal nenhum. Admitamos que seja um milionário de berço. Antes da primeira chupeta, já era milionário. Resta saber que destino escolheu para a sua herança. Você a dinamizou, você a potencializou, você injetou-lhe a sua vontade criadora?
9
Não sei se você passa muitas vezes pela Avenida Atlântica. É o meu caminho diário. Aquelas máquinas, aqueles guindastes, aquelas estacas, aquelas dragas, tudo aquilo parece a fundação do mundo. Todas as manhãs, faço o caminho do Forte ao Leme. E sinto que a praia da véspera não é a mesma do dia seguinte; que o mar é outro; que as dunas conquistam o mar. E como a praia muda, e muda o mar, e as espumas, tudo começa a mudar. É um delírio. Eis o que eu quero dizer: o seu dinheiro pode transformar também a realidade. Pode fazer inventar outras praias, outros mares, outros horizontes, outras ilhas.
10
Quero saber se você, meu bom milionário, tem feito horizontes, ilhas, praias. Há de gostar de uísque. Ou por outra: não gosta, mas toma uísque. Ninguém gosta e todos se encharcam de uísque. Está maravilhosamente certo. Ninguém bebe o que quer, ninguém come o que quer, ninguém tem a mulher que quer. Também finge que adora o seu jardim. Mandou Burle Marx fazê-lo. E o seu jardim só tem uma cor: um verde obsessivo, apavorante, alucinatório. Nós sabemos que não há nada mais feio do que uma cor sem as outras. E as visitas invejam o seu insuportável jardim e acham Burle Marx um gênio.
11
Você gosta de ter, nas imediações, decotes ideais. Nada disso o impedirá de atravessar o buraco da agulha (não o estou chamando de camelo). Mas o que é que você faz ou que é que você tem feito? O Brasil está para ser feito, nós temos de fazê-lo. Você nasceu, e como justifica o fato de ter nascido? É milionário e o acusam de ter dinheiro. Estão contra você o comunismo e o anticomunismo. E é possível que você mesmo, em suas insônias, faça uma autoflagelação.
12
Estou dizendo tudo isso para lhe fazer um pedido, meu bom milionário. Não quero de você nada de épico, de sublime. Pelo contrário. É um pequeno ato, de uma infinita modéstia. Sim, ato humilde, que não vai absolutamente promovê-lo. Ninguém vai saber que você o fez, senão você mesmo. É o seguinte: há, no Brasil, uma revista católica chamada Permanência. Imagino o seu pânico: “Revista católica?” Não se assuste, meu caro milionário. Permanência é uma desesperada batalha contra os “assassinos da Igreja”.
13
Não sei se você sabe, e, se não sabe, fique sabendo: a maioria absoluta, a quase unanimidade das revistas católicas são feitas, precisamente, pelos anticatólicos. Outro dia, li um pequeno jornalzinho e lá Cristo é apresentado como um guerrilheiro. Sim, como um assassino. Dirá alguém: “Mas o guerrilheiro não é assassino.” Acontece, porém, que é perfeitamente — assassino. Sabemos que qualquer guerra é monstruosa. Na última, morreram milhões e milhões de pessoas. Essa abundância cadavérica chega para o nosso horror. Pois a guerrilha é a mais infame das guerras, a chamada “guerra suja”. Direi, apenas, que é a guerra sem prisioneiro, que não admite prisioneiros, que mata prisioneiros. Você entende? Se quem mata prisioneiros não é assassino, quem o será?
14
Permanência constitui uma dramática exceção. É uma das raras, raríssimas revistas católicas feitas por católicos e não pelos inimigos da Igreja. Vive e sobrevive graças ao esforço abnegado e solitário de uma meia dúzia. E, sem meios promocionais, é pouquíssimo conhecida. Imagino que você, milionário, diga: ”Eu nunca a li.” E outros dirão: ”Nem eu, nem eu.” Não importa que ninguém a tenha lido. Mesmo sem um único leitor, Permanência precisa existir, continuar, não morrer.
15
Bem. Vamos ao pedido. Eu queria, milionário, que você fizesse o seguinte: mandasse um cheque para Permanência. Ninguém saberá, ou por outra: saberá aquele que o receber. Mas não mande uma quantia pequenina e vil. Se você, milionário, me pedisse uma sugestão, eu diria: um cheque de vinte milhões antigos. Gostaria de saber se, entre os milionários brasileiros, há um capaz desse gesto de amor. Se você fizer isso, meu amigo, o camelo passará pelo buraco da agulha. Sua doação será um momento da consciência católica.

(O Globo 27-12-69; PERMANÊNCIA, 1990, julho/agosto, números 260/261.)

Fonte: http://www.permanencia.org.br/drupal/node/1017


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Comentários

  1. Abrindo o debate: quais eram os desafios da igreja católica no início da ditadura e quais são agora? Nelson Rodrigues era um "progressista"? O que é ser "progressista" hoje? Os "rejustes do dia 15" multiplicam a riqueza ou concentram ainda mais a renda, inclusive sem nenhum critério de mercado?
    ps: Esta última pergunta foi irresistível.

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  2. Em tempo: Pe. Marcelo Rossi e Calcinha Preta no mesmo show de reveillon em SP. Públicos iguais, artistas tais quais. http://proximoshow.com.br/padre-marcelo-rossi-faz-show-de-reveillon-na-represa-de-guarapiranga/

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  3. Essa revista existia mesmo ou era so mais uma tiração do nelson?! Porque o nome da revista é uma completa tirção de onda se ela existir. Os desafios são os mesmos roma, a diferença é que agora, alem de todos os desafios anteriores ainda tem que competir com diversas outras religiões (ou facções, ou moldes, estilos) que surgiram ao longo dos anos e tomaram conta do Brasil.

    O conceito de progressista ai me lembram os novos moldes religiosos, as novas doutrinas exploradas e seguidas (as religioes e igrejas com interferencia maior e direta do homem, etc). Fugindo um pouco da doutrina catolica de outrora ou do clero vaticano.

    Mas no final das contas tambem está mais facil a vida das igrejas, o medo e a insegurança estão cada vez maior e isso atrai "cordeiros para deus", etc.

    Sobre o reajuste, é aquele lance que Digo falou sobre a diferença ser minima, mais a irrealidade de que irão sumir as taxas extras em detrimento desse aumento (haha, ate parece que vão sumir!). O lance absurdo é o criteiro de mercado realmente, quem no pais recebe 62% de aumento de uma vez?!

    Ps: ja te disse isso, mas voce deveria muito colocar uma imagem nos seus textos, sei la. Pra esse ai tem varias charges sobre religião por exemplo, ajuda no post e ilustra a ideia basica e direta...

    abraço!

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  4. Eu mandei esse show ai numa lista musical, falando de quem engloba os publicos das duas bandas. Achei engraçado essa "união", primeiro canta a deus, depois sarra na gostosa e come ela sem amanha...

    hahaahahahah

    Isso é catolico progressista?! :P

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  5. Existia mesmo, Diegão. O Nelson era conhecidamente um conservador. Apoiador confesso da “revolução de 64”, como dizem os militares e disse Ana Maria Braga hj no seu maravilhoso programa matinal. No que diz respeito a sua imaginação fértil (pra não dizer, catolicamente, “pervertida”) que lastreia sua produção artisticoliterária, temos um Nelson realista e dramático. Chama a atenção como podem coexistir dois universos tão inconciliáveis dentro de um mesmo pensador. Nada mais apropriado, portanto, que a alcunha “anjo pornográfico”. Na qual esse texto exige que acrescentemos “pedinte”.

    Sobre a aumento da concorrência no mundo das organizações religiosas, também chama atenção o antagonismo explicito sobre as religiões orientais, sobretudo o budismo. Pois, para os condiscípulos do Dalai Lama, a palavra-chave da vida, sua essência ultima, é justamente a “impermanência”. Provavelmente, trata-se de uma reação conservadora à chegada triunfante da cultura zen no Brasil, sobre o esteio dos movimentos de contracultura.

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  6. Mto bom o texto. Eu milionário certamente não investiria em religiões. Não gosto d ganhar dinheiro com a fé irracional, mas tolero a fé em marcas.
    Ser Progressista é algo curioso. Primeiro não se sabe se é ser d direita ou d esquerda. Pela origem da palavra pode ser associado a ir pra frente,mas às vezes o q temos é um buraco e ai não vale a pena progredir. Ouvi algo q me chamou a atenção : os partidos não são um grupo d pessoas c as mesmas ideologias, mas d pessoas c os mesmos interesses (expressão no sentido mais negativo)

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  7. Exatamente, Bernão. O texto é interessante porque desvela uma personalidade profundamente confusa. É interessante perceber como são frágeis as concepções de justiça expostas no texto. Até mesmo um gênio com Nelson Rodrigues é capaz de condenar publicamente as guerrilhas, e faz isso sob o manto de uma ditadura que ainda tem o cuidado de torturar antes de matar seus inimigos. “Inimigos da igreja”. A atual presidenta está aí para não me deixar mentir. Se a lista de ilustres é imensa assassinados pelos militares é imensa, os que escaparam da morte é ínfima. Aqui em Recife, temos o Teodomiro. Hoje juiz do trabalho, concursado. O cara foi o primeiro e único brasileiro condenado à morte no período pós-Deodoro. Período este que não merece o nome de República, diga-se de passagem. A intenção foi deixar que as asneiras e preconceitos do texto do Nelson falassem por si. Visto de hoje, vemos que ele estava completamente equivocado. Desde o que concerne à postura dos sociólogos frente ao racismo, até ao papel de Dom Helder. Sem contar que, pra terminar, ele mesmo se desmoraliza mostrando qual era o grupo para o qual os membros reacionários da Igreja dedicavam especial atenção: os milionários do Brasil. Espero que esse texto, per si, tenha ajudado os leitores de hoje a acordarem sozinhos, ou seja, sem a ajuda do Despertador.

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  8. Bernão, ainda sobre seu comentário, um texto muito bom para ajudar na reflexão sobre os progresistas hoje é http://www.diap.org.br/index.php/noticias/artigos/8996-a-tarefa-dos-progressistas . Concordo com vc que isso não passa mais pelos partidos políticos. Eles são lobbies institucionalizados. E só. Se valem das mais profundas emoções humanas para obter votos, tal como faz a publicidade. Não é a toa a intensa simbiose que existe hoje entre marketing e política. O cenário é vil. A conversa tem de ser direta. Urge diminuir os salários, as regalias e as complementações extras no subsídio, até porque estas são inconstitucionais. O economista liberal Raul Velloso já sugeriu o congelamento do super-salários. Proposto que eu subscrevo enfaticamente. Da mesma forma, há de se mitigar os cargos ocupados por indicação, e usar toda a tecnologia disponível para aprofundar a transparência na adm. pública. Entretanto, independente de qlquer coisa, temos que usar a ponderação para frear, pela lógica e pelos fatos, todas as incursões de intelectuais radicais e preconceituosos. Ou que em algum momento sofreram dessas doenças do ego, como é o caso do ilustre Nelson. A virtude sempre está no equilíbrio e o debate de ideias não pode ser levado adiante como são as querelas esportivas, nas quais todos se entrincheiram atrás das cores do seu time do coração. O que importa é a oportunidade de entender os fundamentos do pensamento alheio e avaliar, cuidadosamente, por que estão mais perto ou mais longe de uma solução válida e confiável para o problema em pauta. No caso do Nelson Rodrigues, sei que pode chocar muita gente o fato de eu, um reles mortal, tentar contradizê-lo. Mas não faço isso por arrogância intelectual. Somente pela força dos fatos. E é tão verdade o que eu estou tentando esclarecer que, em 1972, o próprio escritor se reconheceu equivocado: seu filho foi preso, torturado e condenado a 70 anos de prisão pelos militares. Terminou a vida usando seu prestígio para escrever uma carta emocionada a Figueiredo implorando anistia ao Nelsinho. A carta foi publicada 10 anos depois do texto “Carta aos milionários do Brasil”. Preciso dizer mais alguma coisa?

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  9. “Carta aos milionários do Brasil” é diferente da "CARTA AO MILIONÁRIO BRASILEIRO"?.. não encontrei a primeira na internet... Vc não a teria?
    eu já ouvi que um comunista apenas o será até o momento em que vc proponha "coletivizar" a bicicleta dele... acho que da mesma forma, parece que um conservador (no sentido ditatorial da palavra) apenas desejará a morte dos comunistas até que um deles seja o seu próprio filho...

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  10. Escrevi errado o próprio título da "carta" que publiquei aqui. Existe isso? Vc está certo. É "carta ao milionario brasileiro" mesmo. E esse exemplo da bicicleta é ótimo! Já visse o filme Ladrões de Bicicleta, de Vittorio De Sica? Aconselho demais. Quanto aos conservdores, eles são bem mais coerentes. Como vc bem disse, ao que parece, só se sensibilizam com problemas que atinjam diretamente as três grande dádivas: tradição, para fazer jus ao rótulo conservadores; família, como no caso "Nelsinho"; e propriedade, para que cada um não perca a sua bicicleta.

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