Complexo da maioridade penal




Unidade de privação de liberdade para adolescentes em Abreu e Lima/PE


Bem, fizeram circular no facebook várias mensagem de apoio à redução da maioridade penal no Brasil. Em nenhuma, vi algo que refletisse a complexidade do debate. Todas são enviesadas e reducionistas. Mas, ainda assim, uma delas me chamou especial atenção porque, simplesmente, lista alguns países sabidamente vistos como “superiores” pelo cidadão comum brasileiro e, para cada um deles, associa uma idade - abaixo dos 18 anos, claro - que representaria a maioridade penal adequada. Tudo em um cartaz que termina dizendo que esses são dados da Unicef, deixando implícita a ideia de “apoiados pela Unicef”.

Sem o afã de achar que sou dono da razão, sugiro que é importante refletir sobre essas informações. O cartaz ignora completamente que existe, naqueles países, uma diferenciação entre idade penal juvenil e idade penal para adultos. Isto é, o sistema de justiça pune de maneira diferenciada e é mais brando – obviamente – com os jovens, tendo uma linha de corte geralmente aos 18 ou 21 anos. Por exemplo, segundo documento da própria Unicef (sim, da Unicef. Confira aqui: http://www.crianca.caop.mp.pr.gov.br/arquivos/File/idade_penal/unicef_id_penal_nov2007_completo.pdf), a Alemanha pode enquadrar um delito cometido por alguém com até 21 anos dentro de uma tipologia e dosimetria penal bem mais leves do que faria no julgamento de outra pessoa com mais idade. O exemplo do Canadá também requer ponderação. Na Áustria e Inglaterra, idem. As penas são atenuadas até os 21 anos. Lembrando que nesse último país, bem como no País de Gales e Irlanda, o regime de privação de liberdade só pode ser aplicado a partir dos 15 anos. Você sabia que o Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil aplica medida de privação de liberdade a partir dos 12 anos?

Como todos estão cansados de saber, nosso sistema penitenciário, que hoje atende apenas a população adulta, é caótico (o que recebe pessoas com menos de 18 anos é chamado de Sistema de Atendimento Socioeducativo). Superlotação, agentes penitenciários em situação de extremo risco por causa da alta relação presos/servidores, economia paralela com preços inflacionados pelos subornos, alto custo aos cofres públicos para manter uma pessoa presa, e o fato de um presídio, nessas condições, constituir-se numa grande agência de matadores de aluguel, tema este que vou tratar em post específico algum dia. O sistema de privação de liberdade para adolescentes também segue o mesmo caminho rumo ao fundo do poço. Em Pernambuco, de onde escrevo, a unidade da Funase de Abreu e Lima possuía, até final do ano passado, cerca de 250 internos, embora sua capacidade fosse de apenas 98.

Nossa atenção preventiva à infância e adolescência é da mesma forma falida. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE, 2009), somente cerca de 40% das crianças têm oportunidade de frequentar a pré-escola, experiência sabidamente importante para desenvolvimento cognitivo numa época de pais sem tempo. E fazendo uma conta rápida com dados do último censo escolar do INEP e a distribuição da população brasileira em na faixa etária do ensino fundamental (Censo 2010/IBGE), vemos que cerca de 30% nem sequer está matriculada. Fora, portanto, as que não frequentam, e desconsiderando a baixa qualidade do ensino oferecido para os que ainda frequentam com certa regularidade. Você já pensou como seria sua visão de mundo e sua condição de vida hoje caso não tivesse feito nem sequer o ensino fundamental?

Quando nos deparamos com notícias de crimes atrozes é importante saber priorizar as medidas eficazes e razoáveis de enfrentamento. A barbárie só pode ser superada pela inteligência, ponderação e firmeza de propósito na fiscalização do Estado e melhoria das condições econômicas e educacionais da população. É, infelizmente, dado o país que herdamos, um trabalho de longo prazo de maturação. Por isso, parece-me mais razoável pensar em como garantir completo bem-estar para todas pessoas que estão nessa condição pueril tão frágil.Mas como fazer isso dentro de um Estado corporativista e com uma sociedade que, de maneira geral, não define bem suas prioridades políticas? Essa é a pergunta que devemos nos fazer quando ficamos chocados com assuntos relacionados à infância e adolescência. A redução da maioridade penal é uma ilusão apressada. O problema do nosso país é menos a lei que sua execução.

ps: outros dois textos que você não pode deixar de considerar neste debate são: "Pela ampliação da maioridade moral", de Eliane Brum (minha musa e oráculo); e "Cross-national comparison of youth justice", de Neal Hazel, um livro que acessei por indicação de Mauro Teixeira, pesquisador da UFMG que, inclusive, destaca as páginas 30 e 35 da obra.


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Comentários

  1. Parabéns pelo texto Romero. Muito bom. Eu que convivi com muitos jovens que passaram por Abreu e Lima, Cabo, Jaboatão sei bem desta realidade...

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  2. Caro Romero,
    Nada como pesquisas encomendadas (que fazem parte do teatro da grande mídia)no furor das tragédias e calor do sofrimento, alheio, diga-se de passagem. Segundo o blog do Sakamoto, 93%dos paulistanos após a tragédia apoiam a diminuição da maior idade penal; destes, 35% querem que seja entre 13 e 15 anos e 9%, que seja de 12 anos...Não sei mesmo de quem tenho mais medo: da polícia, do bandido ou de nós mesmos. Soluções paliativas, antecipação de campanha política, superficialidade, pseudodarwinismo (pobre é pobre e acabou. Ponto final, é da natureza. Que vença o mais forte, ou mais rico), mascaramento de números, distorção da realidade. Ao que parece nada é discutido com profundidade e sem hipocrisia neste país, ao menos por quem detém o poder hoje. Sufocante, cada vez mais sufocante. Que continuemos a aprender a gritar bem alto, que o bom senso olhe para aqueles que lhe deram as costas em proveito próprio.

    Patrícia

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