Há indicação para internação compulsória?


Pedras de crack tal como são vendidas nas ruas até a R$10,00 nesta data



Quase desisti de escrever minha opinião atual sobre internação compulsória para não ser acusado apressadamente de reacionário pela parte da classe média (aquela que, por ex., reclama do trânsito enquanto dirige diariamente com 4 vagas sobrando no carro), que vive no mundo das teorias com pouca evidência empírica, ainda povoada pelos bem intencionados defensores incondicionais do tratamento voluntário para usuários de drogas em estágio elevado de perda de autonomia. O problema é o "incondicionais", porque depende sim. E, dessa forma, eu, hoje, posiciono-me a favor da internação compulsória de pessoas usuárias de drogas¹, desde que estejam comprovadamente forte e evidentemente dependentesacarretando perda considerável de sua autonomia e quebra dos laços familiares e socioafetivos.

Não se trata do usuário comum, obviamente. Apenas aqueles usuários cuja dependência já comprometeu muito a saúde e seus vínculos socioafetivos. Sei, claro, que o uso de drogas não tem causas somente individuais. É incentivado pela condição de pobreza (embora haja alto consumo em todas as classes, variando apenas o tipo de droga), pela publicidade, pelo proibicionismo (o pai do crack) e pela baixa qualidade da educação. Sei também que se as causas não forem combatidas, a pessoa voltará a cometer abuso. Um indivíduo nessas condições (repito: sem autonomia, forte e evidentemente viciado e com perda dos vínculos socioafetivos) deve, sim, ser tutelado pelo Estado, em prol da sua saúde imediata e da saúde das pessoas próximas.

Como é ratificado inclusive pela OMS, tendo condições específicas esclarecidas em legislação amplamente debatida, qualquer país possui legitimidade para adotar a internação compulsória de pessoas em estado comprovadamente grave de dependência. Do ponto de vista coletivo, o abuso de drogas é uma questão eminentemente de saúde pública. Sendo assim, por analogia, do ponto de vista individual, o abuso e a grave dependência se enquadram no rol das desordens psiquiátricas, isto é, da saúde mental.  A maioria dos países possui previsão legislativa para casos de tratamento compulsório. No Brasil, embora seja na prática muito pouco adotada por causa da diretriz política hegemônica (e dos subornos pagos pelos chefes do tráfico), a internação compulsória pode ser determinada pela justiça quando alguém se apresenta nas condições que já citei e repeti neste texto. Tendo sido o judiciário provocado e se pronunciado pela internação, ele deve designar um médico que será responsável técnico pela internação compulsória, e comunicar ao Ministério Público Estadual, conforme a lei federal 10.216, de 6 de abril de 2001.

Vale ponderar, todavia, que precisamos ter algum cuidado com o que se passa no debate político sobre esse tipo de internação. Lê-se na Internet discussões de baixo nível, levadas a efeito por meio de posições geralmente extremadas, típicas de pessoas com preguiça mental, predominantemente vereadores, deputados e prefeitos com fortes bases religiosas e/ou reacionárias. Infelizmente, posições extremadas também são frequentes pelo lado de alguns bem intencionados ativistas e políticos "de esquerda", e vê-se a construção de uma resistência frágil ao conservadorismo.

Ao primeiro grupo, cabe a indisfarçada vontade de promover a higienização² das cidades, sem sequer discutir as causas do problema ou a incoerência da continuidade do proibicionismo. Ao segundo, a cegueira sobre a ineficácia da diretriz política de apenas realizar tratamento voluntário, que rege ação do governo há anos. A essas pessoas que não se propõem nem mesmo a considerar casos especiais para internação compulsória, sugiro, se moram em Recife, um simples passeio pelo bairro da Boa Vista, às 23h, em qualquer dia da semana. Se forem realmente bem intencionadas, suponho que não permanecerão negando a realidade quando, finalmente, estiverem diante dela.

Devemos continuar com a mesma diretriz na política de tratamento a casos graves? Por que? Por que a internação compulsória “também” não gera resultados expressivos? Com base em que se diz isso?  Bem, com base nos Principles of drug addiction treatment: a research-based guide, temos que descartar a correlação necessária entre manifestação da vontade de se submeter a tratamento e o consequente sucesso terapêutico nesse tipo de situação-limite. Devemos, isso sim, ampliar campanhas para que as pessoas sejam motivadas a procurar o tratamento, mas não podemos demonizar a internação compulsória de dependentes cuja vida se tornou um inferno de angústia, dor e solidão.



¹ = bebidas alcoólicas inclusas, tanto por serem, sim, drogas pesadas, conforme trabalhos do prof. David Nutt, titular de Psiquiatria e Neuropsicofarmacologia do Imperial College of London; quanto por serem as drogas responsáveis pela grande maioria dos casos de dependência e abuso nas populações. Com base em síntese de estatísticas divulgadas por várias instituições de tratamento e pesquisa, como a ABEAD, CEBRID e a SENAD, estima-se que a prevalência do alcoolismo na população brasileira pode chegar até 20% da população, o que equivale a cerca de 40 milhões de pessoas. Para o crack, a estimativa atual é de 1,2 milhão de dependentes.

² = É importante pontuar mais um detalhe do interesse de parlamentares na "facilitação" da internação compulsória. Alguns deles pretendem fazer uso de tal medida extrema para alcançar benefícios pessoais à custa do Estado. Planejam enriquecer firmando convênios com o governo para internar multidões de dependentes graves (ou não, porém pobres) em "clínicas" (na verdade, empresas particulares) de "reabilitação religiosa".



Romero Maia
@SimpliciDados
romeromaia@gmail.com

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