Vítima da inocência





Num contexto em que o público está
mais ou menos ao corrente dos incidentes,
é desaconselhável mentir 100%.
Mas podem se misturar habilmente
o verdadeiro e o falso.
Autor desconhecido



O texto abaixo, escrevi no início de 2009 sobre um caso lamentável de irresponsabilidade no trânsito em Recife. Não foi por acaso que infelizmente veio à memória agora, neste começo de 2011. A cena do Golf preto cortando ao meio um movimento ciclístico em Porto Alegre me deixou completamente estarrecido. 

São casos diferentes mas que associo pela desfaçatez dos criminosos. Tentam subverter cínica e completamente a lógica óbvia (redundância enfática necessária pela comoção) e sórdida de sua desumanidade. E com ajuda de profissionais operadores do Direito, profanadores da Justiça. Esses larápios são seres selvagens que anseiam se livrar do dolo imputando culpa em quem sofre a agressão desmedida. Como num caso de um marido que deixa a esposa paraplégica porque ela o "provoca" demais. Ou seja, merece agressão porque paciência tem limite. Até quando alguém vai ver sentido num argumento dessa categoria? 

O delegado responsável pelo caso, a princípio, parece estar judiando do bom-senso sob a máscara de homem ponderado, dizendo que não é possível ainda afirmar (afinal, as imagens da ocasião estão muito ambíguas) que o condutor teve intenção de atropelar o grupo de ciclistas. Ninguém jamais me convencerá, enquanto eu manter meu são raciocínio, que uma pessoa intenta uma situação na qual sofrerá apenas danos de todos os níveis e tipos. Esses desgraçados (nesse caso, o advogado incluso) são tão irracionais que constroem a defesa partindo justamente da premissa que os humanos também são.

Como vimos nestes últimos dias, o caso do acidente na Av. Domingos Ferreira teve uma reviravolta. Os peritos estaduais dizem que o sinal estava aberto para o jovem embriagado que conduzia sua caminhonete em alta velocidade. Bem, convenhamos, era de se esperar. 

Sabemos da eficiência e idoneidade histórica dos nossos peritos criminais que, inclusive, mostraram em apenas 9 dias (antes disso, costumavam levar em média 30 dias para emitir um laudo pericial) provas contundentes sobre a inocência do motorista bêbado. E com 100% de certeza, vale salientar. Somos forçado a admitir que nem é mesmo necessário muita competência para se atingir margem de erro zero. Nossos peritos contaram com um instrumental muito preciso: uma câmera do sistema de segurança de um edifício que não consegue sequer mostrar o próprio aparelho semáforo com uma definição razoável.

Mas não é a primeira vez no Brasil que a opinião pública é surpreendida com reviravoltas, como ensina todas as noites a novela "A favorita". Afinal, as aparências enganam. Os pobres coitados podem nos surpreender com sua imensa perversidade. Ou será que esperamos deles o pior, e quando aparentam ser "pessoas de bem" (assim, como nós!) ficamos deslumbrados, tal como se estivéssemos diante do espelho? 

No Brasil já temos um histórico interessante de casos que corroboram a tese do Doutor em Ciência Política (USP), Oscar Vilhena: "a lei brasileira trata com rigidez quem a ameaça e extrema doçura quem está em posição favorável". Temos o caso da absolvição do fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, mandante do assassinato de Dorothy Stang, no Pará. Quem foi preso? O pistoleiro contratado. 

Para se ter uma idéia, numa das partes mais pobres do Brasil, a zona rural do Pará, segundo a CPT (Comissão Pastoral da Terra), em média 70% dos assassinatos nem são investigados. Para quem tem problema de memória recente, vale trazer à baila o caso do banqueiro Daniel Dantas. Parede falsa em casa, tentativa de suborno a delegado federal, crimes contra o sistema financeiro nacional etc. Quem foi penalizado? O delegado Protógenes, chefe da operação que prendeu o Daniel, a Satiagraha (do sânscrito, 'Satya' significa verdade, e 'agraha' quer dizer firmeza). Ele foi afastado do trabalho por 4 meses e quando voltou recentemente, recebeu a notícia que está fora da área da Polícia Federal que dá todo o suporte para o combate à corrupção e aos crimes financeiros mais sofisticados. Vale salientar que são comuns as "ações em tempo recorde" em reviravoltas como essa. 

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, proferiu uma liminar que libertou o banqueiro em menos de 24 horas depois da segunda vez em que foi preso. Tal ato fez com que 42 Procuradores da República assinassem uma carta de repúdio classificando a ação do presidente do STF como "inédita" e "absurda". Exemplos esdrúxulos não param por aí. Até quando não há conflito direto entre escol e escória, a história se repete. A justiça brasileira já determinou que o Estado deveria pagar indenização de R$ 9 mil para a família de um jovem morto dentro de uma unidade da Fundação Estadual do Bem-Estar Menor (Febem) e que uma modelo famosa recebesse R$ 100 mil por ter uma foto não-autorizada publicada numa revista.

Dezenas de outros exemplos podem ser encontrados com facilidade. O Brasil é terra fértil, como já disseram nossos descobridores genocidas. Nossa primeira elite. É verdade que cada caso é um caso. Mas devemos estar sempre atentos à repetição da farsa, e buscar na história a tendência do desenrolar dos acontecimentos dramáticos. Infelizmente, as informações cruciais nunca estarão disponíveis para nós, cidadãos-espectadores de toda essa tragédia. Mas se o gran finale consentir a verdade, e se nesse caso o jovem for mesmo inocente, resta-nos lamentar pelo infortúnio da vítima da inocência.



Comentários

  1. Romero.
    Fantástico o artigo... as distorções são muito sérias e a (in)justiça divide a sociedade entre quem 'tem' e quem 'não tem' (seja prestígio, dinheiro, poder...). Também fiquei estarrecida com a cena do Golf preto derrubando ciclistas tal qual 'bola de boliche'. Como fico indignada com a violência crescente no trânsito (cada vez mais caótico em nossa cidade) e dos inúmeros casos de impunidade. Esse ano mesmo, uma 'artista plástica' atropelou e matou um homem e nada aconteceu. Claro o homem era pobre... claro, o homem era um conhecido "cachaceiro" do mercado de Boa Viagem. E nem se fala mais nisso... também, quem manda né?
    Beijos e Parabéns.

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