O que fazer nos limites da ciência, ou como publicar com bom senso.




"O maior bem do homem pensante é ter explorado o explorável 
e serenamente venerar o inexplorável." - Goethe



Entender o rigor necessário para a objetividade do trabalho científico não deve nos tornar loucos vigilantes obcecados em regras quando essas estão esvaziadas de sentido, sem conexão com as circunstâncias do caso concreto. O bom conhecedor e praticante do método científico deve, acima de tudo, ter a competência de identificar quando é inviável sua aplicação, seja por falta de tecnologia disponível para um experimento, ou pela mais simples falta de lógica, considerando a especificidade e complexidade do fenômeno investigado. Abaixo, um texto engraçadíssimo que ilustra bem como a postura científica precisa ser também cética consigo mesma.


Por Alexandre Feldman
Hoje em dia, existe uma enorme tendência, no meio médico sério, em aceitar como legítimos apenas aqueles tratamentos e intervenções que tenham sido comprovados através de complexos estudos estatísticos, cujos resultados tenham sido revisados por editores de revistas médicas e em seguida publicados nessas revistas.
Ao mesmo tempo em que essa prática – chamada de “medicina baseada em evidências” – traz uma série de benefícios para a segurança e eficácia da prática da medicina contemporânea, ela menospreza a prática da medicina baseada na experiência e observação pessoal do médico individualmente.
Por exemplo, se eu, que estudo, observo e trato diariamente pacientes com enxaqueca, constatar, ao longo de quase 20 anos de experiência, que beber chá de gengibre pode ajudar muitas pessoas a aliviar a crise de dor de cabeça da enxaqueca, para a “medicina baseada em evidências” isso não significa que você e todos os demais sofredores de enxaqueca deveriam sequer tentar esse recurso simples acessível em todos os sentidos, saudável por natureza e disponível na sua cozinha.
Não! De jeito nenhum! Seria necessário, antes, comprovar essa observação através de um estudo controlado, aleatório, duplo cego e cruzado.
Explico: seria preciso selecionar dois grupos de sofredores de enxaqueca: um que recebesse uma dose de chá de gengibre, e outro, uma dose de uma bebida neutra, que não é chá de gengibre porém se assemelha tanto a ele, que torna impossível a quem dá ou a quem toma diferenciar uma da outra pela aparência, sabor, aroma, etc (!).
A “bebida neutra” (não me pergunte qual!!!) seria o assim chamado placebo. Qualquer estudo baseado em evidências precisa ser controlado por um placebo.
Nem quem dá, nem quem toma, pode saber qual bebida é qual, durante o estudo. Desse modo, exclui-se o fator psicológico que poderia predispor alguns indivíduos a se sentirem melhor apenas pelo poder da sugestão (!!!), ao saber que estão tomando o chá de gengibre e não a beberagem inerte. E vice versa: aqueles que estão tomando a bebida inerte, se soubessem disso, poderiam se pré-sugestionar a não melhorar. Para excluir essas possibilidades, ambas as bebidas devem ser identificadas por uma terceira pessoa, que não tem contato nem com quem dá, nem com quem toma. Essa identificação poderia ser, por exemplo, através da cor da xícara: uma cor para o chá de gengibre, e outra diferente para o placebo. Pelo fato de nem o médico, nem o paciente saberem qual é qual, esse estudo é chamado “duplo-cego”.
Como escolher qual indivíduo irá para o grupo de pacientes aos quais será oferecido o chá de gengibre, e qual irá para o grupo-placebo? Para evitar qualquer tendenciosidade no momento dessa escolha, ela deve ser feita aleatoriamente através de um sorteio do tipo cara ou coroa. Por essa razão, esse estudo é chamado “aleatório” ou “randomizado”.
Por fim, uma vez que cada grupo tenha permanecido por tempo suficiente tomando chá de gengibre ou placebo (digamos, 3 meses), é feito um “rodízio”, um cruzamento: o grupo que até então tomou placebo passa a tomar o chá de gengibre, e vice-versa. Isso é para testar se quem estava tomando o chá verdadeiro passa a sentir o retorno dos seus sintomas ao mudar para o placebo, e vice versa (o grupo que passa a tomar o chá melhora em comparação ao período em que estava tomando o placebo). A esse estudo, dá-se o nome de “cruzado”.
Todos esses procedimentos, apenas para estudar o efeito de um chá natural e inofensivo!
Quem se disporia a patrocinar esse estudo, pagar por ele? Quem teria algo a lucrar, financeiramente, com um estudo desses? O gengibre pode até ser muito bom, mas não é patenteável. É de domínio público. É uma raiz que está aí, à disposição de quem quiser. É só botar na água quente, que o “remédio” está pronto. Não precisa passar na fábrica, encapsular, encaixotar, rotular, revisar, conferir, distribuir para as farmácias. Não precisa pagar representantes ou demonstradores. De onde viria o lucro para pagar comerciais na mídia, patrocinar congressos e associações médicas, e satisfazer os acionistas?
Além disso, como é que nós vamos conseguir um placebo aceitável? Uma bebida que tenha gosto, aspecto e cheiro de chá de gengibre, seja picante como o chá de gengibre, mas que não seja chá de gengibre – e ainda por cima, garantidamente não possua nenhum efeito – nem terapêutico, nem prejudicial – que pudesse interferir com o estudo.
Sem dúvida, estudos duplo-cegos, controlados, aleatórios, cruzados e publicados em revistas médicas, nos protegem contra remédios ineficazes. São uma forma excelente de provar que nem todo candidato a remédio é melhor que uma simples pílula de farinha! Isso impede que pílulas de farinha sejam vendidas como se fossem remédios. Evitam que você compre gato por lebre. O resultado desse tipo de estudo não é influenciado por “achismos” ou crenças pré-concebidas.
Hoje em dia, para que qualquer produto e/ou intervenção (como cirurgia, aplicação de raios laser, próteses, aparelhos) possam ser levados a sério, comercializados e utilizados para o tratamento ou prevenção de problemas de saúde, a Lei exige, antes de mais nada, que existam estudos, ou pelo menos um estudo, controlado, duplo cego, aleatório e de preferência cruzado, publicado em revista médica, atestando a sua eficácia.
Ao mesmo tempo que isso parece proteger o consumidor de charlatães tentando vender produtos ineficazes, infelizmente não protege o suficiente. Esse sistema não é, nem de longe, à prova de falhas e manipulações estatísticas. A assim chamada “terapia de reposição hormonal” rendeu bilhões à indústria farmacêutica, graças à “medicina baseada em evidências”, até que começaram a surgir estudos como o publicado no JAMA, em 2002, mostrando que as mulheres submetidas a esse “tratamento” estavam morrendo de câncer numa proporção bem maior que as não “tratadas”. Esse achado foi comprovado num estudo publicado em abril de 2007 pelo New England Journal of Medicine.
Muitas coisas que, à primeira vista, podem parecer antinaturais, estão sendo comercializadas normalmente como alimentos – e muitas vezes, como alimentos saudáveis, naturais e até com propriedades emagrecedoras – graças a estudos “baseados em evidências”. Como é que um alimento em pó – uma apresentação que não pode ser encontrada na natureza – pode ser classificado como saudável ou terapêutico? Essa distorção da realidade só é possível graças a esses estudos “baseados em evidências”. Esses mesmos estudos permitem a comercialização de adoçantes artificiais, glutamato monossódico, vitaminas sintéticas, gorduras oxidadas, proteínas desnaturadas.
Agora, ai de quem falar que uma dor de cabeça pode melhorar mascando apenas um pedacinho de gengibre. Não existe – e pelas dificuldades que apontei acima, não deverá existir – nenhum estudo controlado, duplo-cego e aleatório dizendo que comer gengibre melhora a dor de cabeça.
O fanatismo pela “medicina baseada em evidências” tem sido criticado por médicos sérios e inteligentes do mundo inteiro. O caso abaixo é espetacular:
No dia 20 de dezembro de 2003, o renomadíssimo British Medical Journal  (que só publica estudos baseados em evidências) publicou um excelente estudo (baseado em evidências) do médico Gordon Smith, professor de ginecologia e obstetrícia da prestigiosa e tradicional Universidade de Cambridge. Veja só o título do artigo:
O Uso de Para-Quedas na Prevenção de Morte e Grandes Traumatismos Relacionados ao Desafio Gravitacional: Revisão Sistemática dos Estudos Aleatórios Controlados”.
O Prof. Smith argumenta que, embora o uso de para-quedas seja uma norma usual entre as pessoas que saltam de aviões a 10.000 metros de altura, seria necessário pesquisar a literatura médica à busca de estudos baseados em evidências (aleatórios, controlados por placebo, duplo-cegos e cruzados) capazes de comprovar que o para-quedas, de fato, previne a morte ou grandes traumatismos em comparação à queda livre. Afinal, segundo os proponentes fervorosos da “medicina baseada em evidências”, não bastam apenas os dados baseados na observação de que o para-quedas previne aqueles efeitos adversos da queda (morte, grandes traumatismos).
Não! O para-quedas é, no fim das contas, uma intervenção comercializada com o “rótulo” de que previne problemas como a morte e grandes traumatismos. E argumenta: da mesma forma que qualquer outro produto direcionado para prevenir estes e outros problemas de saúde, seria necessário, segundo os ditames da medicina baseada em evidências, comprovar a eficácia dessa intervenção através da avaliação rigorosa de estudos aleatórios e controlados.
O Prof. Smith realizou o que se chama de meta-análise, ou seja, ele em si não foi louco para realizar pessoalmente um estudo desses, mas pesquisou, através de uma revisão sistemática em toda a literatura médica, estudos controlados e aleatórios que demonstrassem que o uso de para-quedas, é mais eficaz do que placebo, ou seja, um objeto semelhante a um para-quedas em todos os aspectos aos olhos do paraquedista, inclusive que se abra como se fosse um para-quedas ao ser acionado, porém que seja totalmente ineficaz como tal, e equivalente à queda livre. Para evitar tendenciosidades, nem os paraquedistas participantes do estudo, nem o pesquisador que lhes distribui os para-quedas, poderia saber qual é qual; apenas um terceiro pesquisador, sem contato com os demais, teria essa informação. Este é o tipo de estudo que o Dr. Gordon Smith procurou na literatura médica, em sua pesquisa.
O resultado da pesquisa? Apesar do uso disseminado de para-quedas, não foi encontrado nenhum estudo como o descrito no parágrafo anterior. Portanto, não existe nenhuma evidência objetiva que sustente o seu benefício.
Foi muito engraçado ler, no seríssimo British Medical Journal, a conclusão do autor:
… Nós achamos que todos se beneficiariam se os proponentes mais radicais da medicina baseada em evidências organizassem e participassem de um estudo duplo-cego, aleatório, controlado por placebo e cruzado, com o para-quedas“.
Diga-se, aqui, que o autor realizou, de fato, a meta-análise, ou seja, a pesquisa rigorosa na literatura médica – caso contrário, seu artigo jamais teria sido publicado no BMJ. O autor cita, com o maior rigor, os bancos de dados pesquisados, os critérios de inclusão, os métodos escolhidos para a análise estatística e até osoftware que seria utilizado para essa análise (caso tivessem existido dados a serem analisados).
Na discussão do artigo, o autor elabora uma série de possíveis razões, de acordo com a “medicina baseada em evidências”, pelas quais se pudesse, por engano, achar que os para-quedas sejam benéficos, quando, na verdade, este poderia não ser o caso. Um exemplo seria o assim chamado “efeito da coorte saudável” – traduzindo: todas as observações realizadas, até hoje, de pessoas que, por uma razão ou por outra, saltaram sem para-quedas de um avião, possuíam diferenças marcantes de saúde entre os grupos, particularmente no tocante à saúde mental, pois é mais provável que um louco, e não um indivíduo saudável, ache, à primeira vista, que o para-quedas não seria benéfico na prevenção de “problemas” relacionados à queda! Além disso, podem haver fatores socioeconômicos envolvidos (ter ou não dinheiro para comprar um para-quedas!!). Isso torna os grupos desiguais, e portanto não aleatórios. O aparente benefício dos para-quedas, portanto (segundo a medicina baseada em evidências), poderia ser provocado por essa seleção desigual, não aleatória – ou seja: poderia ser (segundo os critérios “rigorosos” da “medicina baseada em evidências”) que mais indivíduos morrem ao saltarem sem para-quedas porque já possuíam doenças pré-existentes, ou condições socioeconômicas diferentes – portanto seria preciso um grupo homogêneo para participar do teste. (!)
É claro que o objetivo maior desse artigo foi demonstrar que existem aquelas informações baseadas na observação e experiência; informações baseadas em evidências; e, antes de mais nada, o bom senso. Quando avaliamos a probabilidade de uma dada intervenção ser benéfica ou não, existem situações que simplesmente não poderão – pelos mais diversos motivos – ser esclarecidas através de estudos controlados e aleatórios. Além disso, é possível (como o autor fez na discussão de seu artigo) vir com uma série de possíveis razões pelas quais o para-quedas poderia dar apenas a aparência de eficaz, como condições socioeconômicas ou doenças pré-existentes – sem realmente o ser (dentro da análise rigorosa exigida pela “medicina baseada em evidências”).
Diz o Dr. Gordon Smith: “Não existe substituto para o bom senso. Na ausência ou impossibilidade de estudos controlados e aleatórios, é importante considerar os dados baseados em observação. A questão se uma intervenção é eficaz ou não é sempre muito complexa”.
Faço minhas as palavras do autor. Mais que isso: faço dessas considerações a grande dica desta semana: Nada, absolutamente nada, nesse mundo, substitui o bom senso!

Ps.: indicação do amigo Arthur F. K., médico-cirurgião e cientista.

📧 romeromaia@gmail.com 

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