Lições da eleição presidencial de 2018




"Perdemos. Mas ainda assim não gostaria
de estar entre os que venceram." (Darcy Ribeiro)


Necessitamos analisar, estrategicamente, as lições da campanha eleitoral de 2018. Temos a tendência humana de interpretar novas informações de modo elas serem compatíveis com nossas teorias, visões de mundo e convicções. Filtramos as contraditórias para nossas crenças permanecerem intactas. Só toleramos conviver com pessoas com os mesmos pensamentos. Isso nos leva a repetir erros e conservarmos na mesma posição (bolha) sem adequarmos à evolução, seja socioeconômica, seja política.

Antes de buscar elementos de confirmação de nossas hipóteses anteriores, no caso, ideológicas, nesse viés de confirmação, vamos aqui levantar dados objetivos para um questionamento reflexivo mais amplo: dimensionar o falado costumeiramente por nós.

O perfil majoritário da população brasileira é esboçado por mulheres, não tem pele branca (antirracista), é economicamente ativa (em busca de ocupações para obter renda), possui baixa renda familiar de até três salários mínimos, aceita a homossexualidade e se posiciona contrária à posse de armas. A maioria dos brasileiros ainda defende a democracia como o melhor sistema de governo.

Então, por que razão um candidato aparentemente sexista, a favor da supremacia branca, machista e homofóbico, defensor do corte da tributação progressiva sobre os mais ricos, originário da casta dos guerreiros-militares, travestido de político profissional do baixo clero do Congresso Nacional, criador de um clã, antidemocrático, pregador evangélico do armamento da população, liderou as pesquisas eleitorais?

O candidato do PT apareceu no último Datafolha pela primeira vez numericamente à frente de Bolsonaro entre as mulheres: 42% x 41%. Entre os homens, Bolsonaro tinha 55% e Haddad 37%. Os dois candidatos tinham o mesmo índice de rejeição entre as mulheres, 48%. Entre os homens, Bolsonaro tinha 39% de rejeição, e seu adversário, 57%. O discurso tosco e violento atende aos bolsonaristas?

Levando em conta a escolaridade, no segmento com ensino superior Bolsonaro tinha mais da metade: 54%. Haddad passava de um terço: 34%. No grupo de ensino médio, o capitão reformado 51% e o professor universitário 35%. O petista ganharia no segmento de ensino fundamental com 45%, enquanto o pe-esse-lista perderia com 39%.

Há correlação da escolaridade com rendimentos. Entre eleitores recebedores de mais de 10 salários mínimos, o direitista tinha 61% dos votos e o esquerdista 32%. Na faixa de renda entre 5 e 10 salários, Bolsonaro tinha também 61%, enquanto Haddad alcançava 29%. Haddad foi para 49% na última pesquisa entre eleitores com rendimentos até dois salários mínimos. Bolsonaro registrou 37% entre os mais pobres.

Daí, em traços caricaturais desse perfil, quem tem formação marxista poderia deduzir: “sim, o velho Marx tem sempre razão: a luta de classes de ricos contra pobres é eterna!”

Será mesmo esse credo coerente com os dados na segunda década do século XXI? Examinemos outras informações disponíveis a respeito do comportamento recente dos eleitores brasileiros.

O maior destaque do movimento social na campanha recém encerrada foi o feminismo. Foi às ruas e liderou a manifestação massiva do “elenão” em várias cidades do país. Conseguiu empatar com as mulheres conservadoras – e servis aos machos violentos.

Houve uma fuga do debate de um projeto nacional para todos os habitantes do País. Este não foi apresentado pelo líder na pesquisa, cuja tecla única foi solucionar o problema da segurança pública com maior violência das armas de fogo. O projeto social-desenvolvimentista não teve a oportunidade de ser contraposto ao neoliberal.

A maioria dos eleitores brancos heterossexuais, em caso de vitória de seu candidato, tem o risco de perder o emprego e/ou o poder aquisitivo sem sequer saber bem a razão. E, neste caso, não terá mais o PT como bode-expiatório, julgado continua e arbitrariamente como o único culpado de todas as mazelas econômicas…

O apelidado “Posto Ipiranga”, Paulo Guedes, em seus 69 anos nunca teve experiência da administração pública. Ele chegou à Escola de Chicago aos 25 anos, provavelmente com bolsa de estudos concedida pelo Estado brasileiro na época da ditadura. Saiu, em 1978, com uma tese econométrica, como um ultraliberal, entusiasta do livre mercado.

Logo aceitou a proposta para lecionar na Universidade do Chile na ditadura de Augusto Pinochet, ao lado de ex-colegas de estudos nos Estados Unidos. Quando voltou ao Brasil, não sendo contratado nem por escolas de Economia ortodoxas, resolveu se dedicar ao mercado financeiro, tornando-se sócio do Banco Pactual. Sempre atuou em bancos de investimentos. Enfim, é um mero comprador de ativos baratos para serem revendidos mais caros. Ganha com essa “regra de ouro” do comércio, mas não cria nenhum emprego com as transferências de propriedades privadas sobre ativos existentes.

Professores atuais da Escola de Chicago temem sua reputação ser usada para justificar algum tipo de violência econômica contra os mais pobres em uma democracia sob o risco de morrer progressivamente. Houve desconforto na universidade norte-americana quando economistas recém-formados na instituição, os “Chicago Boys”, formularam a política econômica da ditadura chilena. Hoje o monetarismo está desmoralizado: houve grande “afrouxamento monetário” sem provocar inflação.

O prestígio daquela universidade foi usado para justificar políticas deploráveis em termos de direitos humanos como sendo necessárias para se atingir o neoliberalismo desejado. A história se repetirá aqui? Um Estado violento e repressivo garantirá a privatização de empresas estatais, o corte de gastos públicos com políticas sociais, em um contexto de economia estagnada com alto nível de desemprego?

A proposta política de Bolsonaro está centrada na ideia de armar a população e dar liberdade para policiais matarem bandidos à vontade. O número de mortos pela polícia no Brasil aumentou 20,5% em 2017 se comparado com o ano anterior. No total, 5.144 pessoas foram mortas em decorrência de intervenções de policiais civis e militares. Isso representa 14 mortos por policiais por dia. Já o número de policiais mortos diminuiu 4,9% em relação a 2016: 367 policiais civis e militares foram vítimas de homicídio em 2017. Com 726 mil presos o país tem a terceira maior população carcerária do mundo. Casos de tortura, execuções e falta de transparência caracterizam a atuação policial no Brasil. Nada disso resultou em uma sociedade mais segura. Aumentar a dosagem sem nenhuma inteligência resolverá o problema?!

Há demanda da população por mais práticas e instituições autoritárias? Por isso houve número crescente de ex-policiais e ex-militares eleitos para cargos legislativos? A população acredita eles serem incorruptíveis?! O próprio Exército nacional não corre o risco de sofrer a mesma quebra de disciplina hierárquica ocorrida no fim do regime militar com as oportunidades de mobilidade social e enriquecimento oferecidas a seus membros em cargos ou negócios tipicamente civis?

As Forças Armadas, junto com as polícias militares, também foram contaminadas pelo vírus da política partidária. Isso é um grande risco para a democracia brasileira por elas deterem o monopólio da violência das armas, embora este seja contestado pelo crime organizado. Pior será a liberalização geral de posse de armas. Desavenças do cotidiano, na população civil, por raivas impulsivas, poderão gerar assassinatos impensados.

Em lugar do derrotado establishment do sistema partidário tradicional, devido à não reeleição de alguns conhecidos oligarcas estaduais, as igrejas e os templos, e o próprio Poder Judiciário, se partidarizaram com intervenções diretas para gerar o resultado eleitoral. Somaram-se às associações patronais como a FIESP e outras sindicais como exemplos de instituições transformadas em substitutas dos partidos. As bancadas temáticas – boi, bíblia, bala, bola, etc. – superam em muito a bancada de qualquer partido, inclusive a do maior: 56 deputados federais do PT.

Repito: esta eleição revelou a multidimensionalidade da sociedade brasileira. A elaboração de uma estratégia eleitoral adequada a sua nova estratificação não pode se reduzir à luta de classes binária, ideia originária do Partido dos Trabalhadores. Deve considerar também o status social de quem ascendeu inclusive graças às políticas sociais implantadas nos governos de 2003 a 2014. O PT necessita se aliar às outras afiliações “partidárias”: grupos e associações com ações coletivas para influenciar a sociedade.

Em conjuntura de enfraquecimento sindical, pela desindustrialização, desemprego e reforma trabalhista, o PT tem a missão de representar os movimentos sociais como os das lutas identitárias – feministas, antirracistas, LGBT, MST, etc. Mas a prioridade máxima tem de ser apresentar um projeto de desenvolvimento socioeconômico para a população de regiões menos desenvolvidas: Nordeste e Norte do Brasil. E mais que isso: sua responsabilidade política e social é apresentar um projeto nacional, para todos os habitantes do País, sem a divisão do discurso identitário ou classista, que estimula o “nós contra eles”. Este só gera reação negativa por parte dos atacados – até mesmo de quem adotou o imaginário social da “nova classe média” por causa da mobilidade social ocorrida na Era Social-desenvolvimentista (2003-2014). Ou seja, são vários projetos mas um foco: desconcentração da riqueza como caminho para o fim definitivo da pobreza.

Sua nomenclatura, completados 50 anos de rebeldia da geração 68, necessita ser renovada por novas gerações. Uma vitória nesta campanha foi o surgimento das novas lideranças nacionais de Haddad, Manuela e Boulos. Um bloco de esquerda, tipo frente ampla antifascista, terá a grande missão de resistência social contra uma regressão histórica do País.

Post Scriptum:

Outra grande lição para a luta política foi dada por muitos políticos de esquerda do Nordeste, vencedores das eleições para governador: aliança programática mais ampla possível contra o candidato da direita, isolando-o. A fragmentação da esquerda no Sul-Sudeste-Centro-Oeste a enfraqueceu muito quando a direita propagou o voto útil já no primeiro turno. Ocorreu o contrário da tática adotada no Nordeste.


Autor: Prof. Dr. Fernando Nogueira Costa






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