O que a (falta de) empatia tem a ver com o caso Mariana Ferrer?




Todas as almas nobres têm como ponto comum a empatia.

Friedrich Schiller


É necessário defender o óbvio. Era o que dizia o dramaturgo alemão Bertold Brecht (1898-1956), provavelmente atônito com o total sufocamento do sentimento de empatia sempre que há o crescimento de formas autoritárias de pensar e agir. A intenção aqui, infelizmente, não é mudar as convicções de quem pensa como um Rodrigo Constantino, seja sobre o caso da Mariana Ferrer, seja sobre política econômica, ambos os temas em que minha discordância com ele é total. Mas quem sabe fazer algo tão desafiador quanto. A ideia é trilhar um caminho que explicaria a forma que ele tem de pensar, e mostrar onde está o equívoco. É difícil, é sutil, complicado de expressar textualmente, mas vou me esforçar porque... é necessário.

Constantino conclui que a Mariana Ferrer não tem o direito de acionar o judiciário  e deveria ser castigada pelos pais em casa, porque ela teria dado sinais claros que queria fazer sexo com qualquer um naquela noite de 15 de dezembro de 2018. Não é preciso dizer (ou é necessário dizer) que ninguém chega num ponto tal de querer fazer sexo com qualquer um, indiscriminadamente, sem quaisquer preferências, em qualquer situação. Isso não existe. Mas sigamos. Então, por isso, ele supõe que o fato dela reclamar por um crime de estupro não passaria de alguma forma de prejudicar um homem. E por que ela faria isso? Pra entendermos a cabeça de Constantino só resta uma explicação possível diante de seus pressupostos: ela se arrependeu por algum motivo, e esse arrependimento gerou desejo de retaliação. Não há provas cabais de que não foi ela mesma que se drogou, em vez de ter sido entorpecida furtivamente pelo André Aranha ou qualquer outro. Também não há provas contundentes de que ele tenha usado de agressividade para forçá-la a ter relações sexuais. Ela também não juntou provas que, antes e durante o ato sexual, havia deixado claro que não era de seu consentimento; e nem mesmo que estava em estado evidente (para um observador, no caso o réu) de perda de discernimento e de capacidade de expressão de sua vontade. Todas as suas provas só confirmam o ato sexual, ou "conjunção carnal", com exames probatórios da presença de sêmen na calcinha e rompimento do hímen, mas não conseguem excluir dúvidas que ela só se arrependeu depois e o denunciou, mas na hora supostamente consentiu conscientemente.

Seu argumento mais forte que apontaria um estupro foi o fato de não ter conseguido reconhecer o réu a posteriori, o que tem alguma força mas não se configura como prova objetiva de sua versão dos fatos. E, por causa disso, Constantino endossa que não há qualquer fumaça do bom direito pairando sobre a acusação. Tanto que o André Aranha foi absolvido, na verdade, por falta de provas, embora tenha pesado o convencimento do juiz sobre a ausência do dolo como vamos tratar mais adiante. Numa nota, o Ministério Público registrou que “combate de forma rigorosa a prática de atos de violência ou abuso sexual, tanto é que ofereceu denúncia criminal em busca da formação de elementos de prova em prol da verdade. Todavia, no caso concreto, após a produção de inúmeras provas, não foi possível a comprovação da prática de crime por parte do acusado”. Para o promotor Thiago Carriço, para o juiz Rudson Marcos, e para Constantino, só se tem a certeza que uma moça transou com um rapaz depois de ter usado drogas. E isso não é crime. E como nenhum rapaz teria, na visão deles, condição de saber acerca do nível de autonomia decisória dela naquelas circunstâncias de uma festa, a falta de dolo vira a hipótese mais provável, ou no mínimo a intenção de fazer sexo sem consentimento é colocada em dúvida e "in dubio pro reo".

Mas vejamos a situação por outro ângulo. Vamos conjecturar uma situação bem mais leve que um estupro, a título de comparação, e colocando um homem como vítima para facilitar o entendimento para pessoas que “fecham” (a cabeça) com Constantino. Suponham um rapaz bonito, jovem, e que faz questão de estar presente em festas badaladas da alta sociedade para flertar. Esse rapaz usa drogas, seja álcool, sejam outras drogas. Com o aumento do consumo, ele começa a ter alterações e lapsos de consciência. Alguém vê nisso uma novidade ou situação atípica de se encontra por aí? Algum julgamento sobre a integridade moral dele? Creio que não. Continuemos. Vamos imaginar pessoas que, a partir da postura expansiva dele, assumem que a intenção do rapaz é ficar com qualquer um naquela noite. Então, num dos lapsos de consciência gerados pelo consumo de drogas, um outro rapaz que estava na mesma turma que ele chega mais perto e lhe dá um beijo na boca. Esse beijo dura bem mais do que ele permitiria caso estivesse em sã consciência. O fato acontece, todos veem, e ficam indiferentes porque parece uma situação dentro do se entende como normal para uma balada. Esse é o ponto. Se ao chegar em casa e contar pro pai que vários amigos o viram com outro homem aos beijos, mas ele não lembra, esse pai, um Constantino da vida, iria colocá-lo de castigo, ou iria dizer: "Filho, vamos descobrir quem foi esse desgraçado que lhe humilhou e acabar com ele." ?

Percebem agora onde reside a fonte de toda resistência à versão da Mariana Ferrer? Não na suspeita de que ela pode estar mentindo. Porque sim, ela pode. Todo humano é capaz de mentir, até onde eu sei. Mas não é essa a raiz da aversão e total falta de decoro, respeito e ética durante a audiência. O repúdio à conduta pregressa da Mariana vem da falta de uma coisa que se fala muito hoje em dia, mas que quase ninguém verdadeiramente pratica, a empatia. Há menos empatia dos homens em caso de crimes sexuais porque, em geral, não possuem a mesma intensidade memórias de medo, ou traumas, em situações recorrentes associadas a uma outra pessoa, em média mais forte fisicamente, tentando fazer sexo sem que se tenha também o mesmo desejo. Esse tipo de empatia pela experiência particular de ser mulher pode ficar mais fácil de ser aprendida, por exemplo, por presidiários homens que já sentiram ameaça real de serem usados para sexo sem consentimento. Por isso, repito, o que explica a postura defendida pela direita conservadora não é a afinidade que ela sente com o modo “rigoroso" do posicionamento do Constantino, "um pai que educa", mas é a falta de empatiapor mais que nunca venham a admitir isso. Porque o se tal "rigor" varia com o sexo, essa incoerência revela o inconfessável. Notem, não importa se a moça foi mesmo estuprada para o que quero focar aqui, da mesma forma que não importaria se o personagem do jovem rapaz bonito foi ou não beijado por outro homem na balada na situação pictórica que criei acima. Ambos podem estar mentindo. A análise aqui é de onde vem a reação de acolhimento ou de desconfiança em primeiro lugar, de ética ou falta dela, porque isso, agora, é passível, sim, de penalidades administrativas contra todos que figuram naquele vídeo da audiência.

No caso da decisão judicial, a parte técnica, é o que menos me choca, pois não foi esdrúxula como acabou sendo divulgada erroneamente com o termo bizarro de “estupro culposo”. O comentário divulgado pela prof.a de Direito, Gabriela Prioli sobre o enquadramento do réu no “erro de tipo” implica necessariamente o afastamento da hipótese de dolo na ação. Isso equivale a supor que, do personagem masculino que criamos para fins de analogia, não pode ser esperado que tivesse um bom nível de certeza acerca do grau de lucidez de alguém naquela situação festiva. Dito isso, a prof.a Prioli parece estar correta, mas reiteramos que importa ainda mais a condução do julgamento que a discussão técnica da sentença. O principal, nessa segunda etapa do caso, do acolhimento pelo Poder Judiciário, é a forma agressiva e punitiva que profissionais, claramente assemelhados ideologicamente a Constantino, atestaram sua total falta de empatia e, por conseguinte, ética com a denunciante. Um juiz, um promotor e um advogado foram parciais "pro reo" não apenas em virtude da dúvida, o que seria correto,  mas por causa da diferença sexual entre as partes numa denúncia de suposto estupro. Isso fica evidente na agressividade tolerada pelo machismo de todos, ou seja, na falta de empatia. Existem dois pesos e duas medidas, e não uma balança equilibrada na mão de uma Themis vendada.

Por mais que os operadores do Direito e juízes se autoproclamem ponderados e racionais diante da letra fria da lei, todos têm bastante dificuldade de entender o que mexe com seus brios, o que afeta suas próprias emoções mais básicas. A principal delas, no caso, o ódio, que foi a emoção que o advogado de defesa, Cláudio Gastão, procurou incitar estrategicamente. Na Sociologia, a moral social, os "mores", sempre pode ser manipulada. E não faltam "catalisadores" para um advogado apelar aos "mores" quando se tem muito dinheiro envolvido. O André Aranha já foi fotografado com figuras como Gabriel Jesus, Ronaldo Nazário e Roberto Marinho Neto, e é filho do advogado que representou a TV Globo, Luiz de Camargo Aranha.

Enfim, é possível realizar um julgamento ponderado e racional movido por um ódio que nem sequer é admitido? A resposta é óbvia... O ódio inviabiliza a realização da justiça mesmo que, eventualmente, a sentença seja acertada, como defende a prof.a Gabriela Prioli. Isso vale também pro outro lado da moeda, isto é, ninguém deve disseminar acusações sobre um réu (ou uma ré) se determinado processo ainda pode receber recursos. O ódio pode se inserir em todas as frestas emocionais, através de todas as colorações políticas, e até na aderência rápida à causa de quem se diz vítima de injustiça. Dito isso, o problema é que quaisquer pessoas com ódio, assumido ou não, jamais vão se colocar em posição de tentar entender que a busca da objetividade depende do treinamento da empatia. Mas depende sim. E esse esforço consciente precisa ser diário. Se você não sabe por onde começar a treinar, espero que, ao chegar até aqui nesta leitura, tenha percebido que já é de grande valia seguir na direção contrária do que sente e do que argumenta um Rodrigo Constantino.



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