A psicologia do pesadelo de Ciro



Não desças os degraus do sonho
para não despertar os monstros.

Mario Quintana



Quase todo mundo já tem seu voto pra presidente definido. Mas embora somente 20% (dados do IPEC, em 19.9.22) seja formalmente o percentual de indecisos para a escolha do presidente, se considerarmos todos os cargos em disputa pouca gente sabe o que quer. Ou seja, vale mais a pena debater sobre governadores, senadores e deputados. Então por que os ciristas continuam, apesar dos conselhos de Cristovam Buarque e até de alguns membros do próprio PDT, na luta para ultrapassar Bolsonaro? Ainda mais sabendo que, no meio desse contingente, cerca de 5% vai terminar votando branco/nulo? Em certos casos, insistir numa batalha desastrosa não é mais inteligente que desistir. 


Todo nós, quando nos comprometemos publicamente com qualquer coisa (pessoa, time, ideia etc.) que nos inspira, temos uma dificuldade enorme de abrir mão desse apego em virtude das circunstâncias. Basta ver debates sobre temas em que há discordância menos por motivos técnicos que por questão de gosto. O debate, nesses casos, termina reforçando as dependências às preferências iniciais. Processo que se torna ainda mais intenso se houver outras pessoas assistindo. Na Psicologia, esse fenômeno recebe o nome de escalada irracional de compromisso, um viés cognitivo. 


Jamais subestime um viés cognitivo. É uma falha na tomada de decisão que é fácil observar e avaliar nos outros, mas temos considerável dificuldade de avaliarmos em nós mesmos. É um defeito de fábrica. Não é possível fugir da sensação que nos impulsiona a agirmos de acordo com nossos vieses. É possível, no fim das contas, até agirmos de maneira diferente do que tende o nosso viés. Porém, precisaremos enfrentar um processo forçado, não fluente, da nossa capacidade de tomar uma decisão e levar a efeito uma atitude, digamos assim, mais refletida. Por isso, é possível sim abrir mão de certas convicções, mas isso depende de muita intenção e treinamento prévio para, no calor de um debate, estar disponível a discordar de si mesmo. A tendência natural é se entrincheirar cada vez mais e, na falta de munição, ir insano à linha de tiro com a faca entre os dentes. 


Esse é um dos mecanismos que estão produzindo a triste derrocada do notável Ciro Gomes, o melhor candidato que existia até meses atrás. Ciro perdeu a razão ao ser dominado pelo seu viés. E que ninguém subestime o termo “irracional” dessa escalada de compromisso. Ao requentar o boato que George Soros financia a esquerda mundial, e mais especificamente o PSOL no Brasil, deu um sinal máximo desse destempero. E ao disseminar que existiria um novo gabinete do ódio, agora de esquerda, trabalhando contra sua campanha, levanta uma hipótese meramente retórica. Abre mão da navalha de Occam, e dá um salto ornamental sobre a explicação mais simples: reação de marketing eleitoral nas redes sociais às suas falas hostis. E por que não supor que viria do gabinete da direita? Por que nesse caso seria fogo amigo? Que trágica ironia do destino ele se meteu. Mas pior seria se pior fosse... Quanto mais se sopra para abaixar o fogo, mas o fogo arde.  


Essa irracionalidade vai desfigurando o gênio, roubando seu sono, gerando paranoia, destruindo sua calma. Como se trata do domínio de um viés sobre a cognição, Ciro não irá desistir. Trata-se de uma estrutura inconsciente muito forte que para uma pessoa resistir e ocupar seu lugar com lucidez precisaria de treinamento meditativo, longo e sistemático das emoções. Ciro fez isso? Talvez pouco ou talvez nunca. Mais que um compromisso do candidato com pessoas e ideias (brilhantes, diga-se de passagem, e registradas em livro "Projeto Nacional: o dever da esperança”), o que está em jogo é um sonho


Como pedir para um político experiente e com a inteligência de um Ciro Gomes abrir mão do coroamento de sua carreira ilibada só porque se tornou um pesadelo? É desumano pedir uma coisa dessas, ainda mais quando ele julga que foi traído pelo PSB e pelo PT em 2018. Então racionalizações como “morrer lutando”, “até o fim”, “não desistir jamais” invadem a mente como se fossem ótimas justificativas para entrar para a História. A boa sabedoria, tanto a que procuramos ponderar neste artigo quanto a que ficou famosa na exposição de Gregório Duvivier, recomenda olhar sempre para os dados, cuja inclinação vem apontando apenas para uma vitória de Pirro no lugar da tão sonhada vitória de Ciro.  

 

.  Romero Maia - Instagram: @SimpliciDados

📧 romeromaia@gmail.com


Comentários

  1. Ótima reflexão, Romerinho. Também se aplica perfeitamente aos Ciristas, mesmo aos que reconhecem a necessidade de votar em Lula, mas não o fazem sem antes fazerem eco aos delírios de seu ídolo de que Bolsonaro e seus mais de 600 mortos são uma criação de Lula, do PT e dos seus eleitores. Impressionante como, sem se aperceberem, cada vez mais se aproximam, no pensar e no agir, daquele que dizem tanto odiar.

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  2. Lamentável o qie Ciro Gomes está fazendo consigo mesmo.

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  3. Amigo, o seus textos são ótimos, parabéns. Porém o que você não aborda com tanta qualidade é o contexto eleitoral. Dizer que o Ciro se destemperou, que ele isso e aquilo é na verdade aceitar o mesmo vies retorico para a retomada de Lula. Seria plausivel e racional 51 milhões de pessoas aceitarem as mesmas contradições de Lula em outra pessoa? Jamais, pois esse é o vies da atual "esquerda brasileira", pois assim você o fez nesse texto. Lula pode tudo, e Ciro se erra uma virgula é um cretino. Onde, dentro de uma pespectiva racional, seria razoavel eleger para presidente a mesma pessoa e o mesmo partido que roubaram Bilhões de rais, além de criar a mais grave desigualdade social dos ultimos tempos (para além de tantas criticas e total falta de auto criticia) ? E os valores? Em troca de uma suposta vitória substituir seu valores, é esse apontamento que você faz para Ciro, sendo que o mesmo se manteve firme em sua crítica a Lula e Bolsonaro, em nenhum momento abaixando a guarda, não porque é melhor ceder, ou seria mais sábio, mas porque quando se tem valores, não se abre mão deles! Ainda mais em detrimento de antagonistas tão corruptos. Esse é o ardiloso oficio de tentar dar o exemplo. É por ai onde o Brasil sangra. Fatalismo e determinsmo politico quase que irremediavel, onde é natural e razoavel que o povo aceite doses de mal caratismo, pois só assim é possivel ter governo. Uma certa cumplicidade do povo com a sua tragedia, onde quem rouba e faz é aclamado e idolatrado, e os que tentam se opor a isso, naturalmete são esquarteijados... Foi assim com Lula... ate que um dia ele cedeu e foi eleito....

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    1. Opa, Pedro. Bom dia. Veja, eu não disse que ele se destemperou. A escalada irracional de compromisso é um viés cognitivo presente em todos os seres humanos, inclusive eu. Temos alguma liberdade para diminuir seus efeitos, mas pouca. O que eu gostaria que desses mais ênfase no que escrevi seria a parte: “Mais que um compromisso do candidato com pessoas e ideias (brilhantes, diga-se de passagem, e registradas em livro "Projeto Nacional: o dever da esperança”), o que está em jogo é um sonho. Como pedir para um político experiente e com a inteligência de um Ciro Gomes abrir mão do coroamento de sua carreira ilibada só porque se tornou um pesadelo? É desumano pedir uma coisa dessas, ainda mais quando ele julga que foi traído pelo PSB e pelo PT em 2018.” O grande problema, enfim, está provavelmente no impacto das pesquisas eleitorais sobre o voto útil que eu tentei explicar no artigo do dia 18/10/22, aqui: http://despertador-br.blogspot.com/2022/10/as-pesquisas-eleitorais-erram-ou.html
      Grande abraço!

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