Bom senso para entender o Censo



Texto originalmente publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 30 de julho de 2022, às 18h23.


Quer um exemplo de como o serviço público no Brasil pode parecer caro quando, na verdade, não é? Um milagre? Não, pura realidade dos dados. O Censo, maior operação civil da América Latina, tinha um orçamento previsto de R$3,4 bilhões. Além de ter atrasado dois anos para ocorrer, entre outros motivos por conta do isolamento social necessário durante a pandemia da Covid-19, foi considerado muito dispendioso pela classe política que reduziu seu orçamento para R$2,3 bilhões. Um corte nominal de mais de 30%. E se considerarmos ainda a variação acumulada da inflação oficial temos que os gestores públicos do Instituto ficaram com R$1,8 bilhão, em valor real corrigido pelo IPCA, para recensear aproximadamente 75 milhões de domicílios no território nacional. Números grandiosos que dão a impressão que ainda assim é um gasto enorme para o país.

Mas o que é o Censo? É basicamente mobilizar e treinar mais de 210 mil pessoas contratadas com conhecimentos técnicos para fazerem visitas de coleta de dados pessoais e domiciliares em todos lugares (muitos de dificílimo acesso) espalhados pelo Brasil[1]. Além de todos os insumos que precisam ser usados para transportar as pessoas, equipá-las para a coleta de dados, garantir a gestão centralizada das informações, a lei do sigilo estatístico, e monitorar a qualidade de seus serviços. Sem contar com os trabalhos prévios de planejamento, e os posteriores de checagem, crítica e divulgação. Isso implica que a parte mais importante do Censo, que é você responder o questionário, equivale a uma entre dez etapas de todo o trabalho. Confira na lista abaixo:

  • Discussão Interna
  • Consulta Pública
  • Consulta a Usuários
  • Consulta à Comissão Consultiva
  • Testes do Censo
  • Atualização da Base Territorial
  • Pesquisa Urbanística do Entorno dos Domicílios
  • Coleta (é aqui que você, ou ao menos uma pessoa do seu domicílio, responde)
  • Controle de qualidade e crítica
  • Divulgação dos Resultados

Em média, isso significa um gasto de R$30,66 por domicílio em valores correntes. “Mas que caro!”, o cidadão pagador de impostos pode pensar. Já que o salário mínimo vigente, de fato, é tão mínimo que o custo total de cada entrevista alcança 2,53% desse patamar de renda. Então, anote aí: mais um motivo para você não jogar seu dinheiro fora rejeitando o recenseador. Nenhuma pergunta que consta nos questionários do Censo é colocada sem teste prévio de sua viabilidade, entendimento e estimativa de seu custo na despesa da operação censitária como um todo. O questionário precisa ser um instrumento válido de coleta o mais eficiente e eficaz possível. Essa relação entre custo de uma atividade estatística essencial, que não visa lucro por sua natureza de atividade típica de Estado, e sua proporção em termos de salário mínimo, é apenas um indicador do quanto a força de trabalho de um país pode estar empobrecida.

Uma forma didática de ter clareza do quão caro ou barato é um serviço essencial é compará-lo com outro país que também o realiza. Os EUA realizaram seu Censo em 2020. Lá existiam construídos cerca duas vezes mais domicílios que no Brasil. Logo, o serviço público dos EUA, se for bem mais eficiente que o nosso, deve ter realizado um Censo com um valor menor que o dobro do que o orçamento restante para o IBGE. Só que não.

O Censo nos EUA custou aproximadamente, de acordo com o U.S. Government Accountability Office, US$14,2 bilhões[2]. Calma. Você não leu errado. O valor está em dólares mesmo. Deflacionando-o, considerando o câmbio e a diferença na quantidade de domicílios, o serviço público dos EUA cobrou não o dobro ou o triplo, mas cerca de 20 vezes o montante autorizado para o IBGE realizar um trabalho que usa metodologia semelhante, uma vez que precisa ser comparável internacionalmente. Decorre disso a necessidade de padronização das diversas perguntas do questionário que não podem ser alteradas ou adaptadas sem que haja, além da verificação viabilidade metodológica, financeira e operacional, um acordo entre todos os países participantes de organismos internacionais como a Comissão de Estatística da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Fora o impacto que qualquer mudança acarreta na cadeia de treinamento das milhares de pessoas envolvidas na coleta de dados.

A situação do IBGE hoje pode ser definida como um dos mais respeitados institutos de estatísticas oficiais do mundo tentando, com muita seriedade mas com poucas condições, iniciar o Censo em 1° de agosto de 2022 e levá-lo a efeito nas ruas até meados de novembro. Essa é sua tarefa mais importante e também a mais cara. Porém, como dissemos, se compararmos com o último censo realizado pelos EUA, somos levados a ter fé no IBGE como um santo que faz milagre em vez de um conjunto de pesquisadores tentado fazer ciência no Brasil.

Como se não bastasse, existem diversas outras pesquisas em curso que trazem dados que não são contemplados pelo Censo Demográfico. Assim, as metas de entregas para 2022 se tornam ainda mais desafiadoras dentro de uma estrutura que possui déficit de cerca de 5 mil trabalhadores no seu quadro de pessoal, de acordo com informações do sindicato nacional. No portfólio do órgão há dezenas de pesquisas que coexistem para que o Instituto possa atingir sua missão de retratar a realidade para o exercício da cidadania. Missão essa, sim, muito cara para o país, mas no sentido de seu alto valor intrínseco para garantir nosso bom senso.


Notas:

[1] Ver: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8184.htm>.

[2] Ver: https://www.gao.gov/products/gao-21-478#:~:text=With%20the%20decennial%20census%20coming,recent%20estimate%20of%20%2415.6%20billion>


Autores:

Romero Maia, Gestor de Pesquisas do IBGE e membro do Grupo de Métodos de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: romeromaia@gmail.com

Dalson Figueiredo, Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Catalisador do Berkeley Initiative for Transparency in the Social Sciences e visiting scholar na Universidade de Oxford – 2021/2022 – E-mail: dalson.figueiredo@ufpe.br



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