Só é possível ter orgulho de ser nordestino


 
Artigo originalmente publicado no Jornal do Commercio, em 10/10/2022 às 9:37 | Atualizado em 18/10/2022


Manifestações de preconceito contra o Nordeste, embora não sejam novidade, ainda foram muito piores desta vez. Talvez porque o atual estágio de deterioração da cultura política nacional esteja dando a sensação de que é permitido odiar cerca de ¼ da população brasileira por ela ter revelado rejeição ao atual presidente. É uma oportunidade importante, então, que temos para fazer o contrário, ou seja, homenagear e, se possível, ainda levantar alguma hipótese que explique a resistência desse povo.

Imagine você nascer num lugar cujas elites e governantes oferecem muito menos oportunidades para seu desenvolvimento. Não por causa de problemas necessariamente ligados ao clima ou à qualidade da terra, uma vez que já fomos durante muitos anos a região mais rica do Brasil. Pernambuco chegou a dominar sozinho mais da metade de toda exportação de açúcar do país, o “ouro branco".  Foram apenas razões políticas, de direcionamento do financiamento público industrial e do investimento público em educação básica e superior, que definiram, a partir do séc. XX, o futuro da região.

Nessa circunstância de escassez de investimentos e pobreza, dificilmente você conseguiria fazer grandes coisas com suas habilidades e inteligência. Provavelmente passaria desconhecido para a História. Todas as probabilidades estariam contra você. Mas, veja, eu não estou vindo aqui como um nordestino para lhe impressionar com um Castro Alves da vida, um Jorge Amado, uma Rachel de Queiroz entre tantos outros que elevaram o patamar da arte de nosso país. Até porque se fosse para tratar da já bem difundida arte feita por nordestinos, precisaríamos escrever uma lista de milhares e, mesmo assim, de pouca serventia porque o preconceito renasce não por desconhecimento, mas apesar desses gênios já serem de amplo conhecimento dos “sudestinos” em geral.

A minha intenção aqui é só lhe livrar da ignorância de achar que apenas arte de primeira qualidade pode florescer de um lugar vítima de exploração e injustiça. Por incrível que lhe pareça, uma região ocasionalmente mais pobre gera também vários gênios em outras temáticas, mostrando o tamanho do desperdício de optar pela discriminação em vez da integração e diminuição da contração econômica e educacional.

Como diz a sabedoria matuta nordestina: “Fazer um bom [trabalho] no bom é muito bom. Quero ver é fazer um bom num [período] ruim.” O Nordeste é o maior especialista do Brasil em fazer um trabalho bom num período ruim, e a apuração de votos no 1º turno é só mais uma evidência disso.

Aqui você vai ter uma noção um pouco maior o quanto Nordeste foi e é essencial para ajudar o país (e o mundo) no campo das pesquisas acadêmicas. Por quê? Porque, ao que parece, quando se tem um caldo de cultura original que gera orgulho e certa coesão social, é provável que disso derive um interesse natural por sabedoria. E quando nascem pessoas nessa região que, por herança ou sorte, enxergam uma oportunidade de se desenvolverem, elas vão obstinadamente até o fim para deixar um bom legado.

Guarde estes nomes:

Jaqueline Goes de Jesus

- geneticista negra que entrou pra História do Brasil por ter sequenciado, no recorde de 48 horas, o vírus da Covid-19. É uma crítica da atual direita brasileira pelos sucessivos boicotes à ciência e pelo incentivo proposital de atitudes negacionistas.

José Leite Lopes

- um dos maiores físicos da História do Brasil, responsável pela primeira predição do bóson Z em 1958, cujos resultados foram usados posteriormente por americanos que, por isso, foram premiados com o Nobel da Física em 1979. Também dedicou seu tempo a enfrentar a direita política que instaurou uma ditadura militar no Brasil.

Ricardo Ferreira

- um dos maiores químicos da História do Brasil, desenvolveu o cálculo das constantes de ionização dos ácidos oxigenados, além de também atuar como físico e ter asteroide batizado em sua homenagem. Mais uma mente brilhante que se expressou contra a ditadura militar da direita no Brasil.

Fábio Hazin

- um dos maiores engenheiros e oceanógrafos do Brasil. Mestre e doutor pela Tokyo University of Marine Science and Technology e pós-doutorado em Economia da Pesca pelo Southeast Fisheries Sience Center/EUA, sendo inclusive presidente do Comitê de Pesca da ONU. Embora sem comorbidades, faleceu vítima da Covid-19, por causa do atraso da chegada da 1ª dose para pessoas de 50 e poucos anos. Foi um aturado crítico da atual direita brasileira, especialmente nos temas de moralismo religioso, apologia ao porte de armas, e negacionismo científico.

Silvio Meira

- um dos mais inovadores engenheiros de software do país. Professor emérito do Centro de Informática da UFPE. Também preside o conselho de administração do Porto Digital, em Recife. Recebeu da Presidência da República, as comendas da Ordem Nacional do Mérito Científico, da Ordem de Rio Branco e o Grau Comendador do Quadro de Graduados Especiais da Ordem do Mérito dos Guararapes. É um dos mais importantes palestrantes sobre tecnologia e inovação do mundo. Sobre a visão dele a respeito da atual direita que assumiu o poder no Brasil, baste ver estes 21 segundos de vídeo aqui.

Nise da Silveira

- umas das maiores médicas psiquiatras da História do Brasil, revolucionou as referências de tratamento realmente eficiente e eficaz para pacientes com transtornos mentais. Também dedicou tempo para atuar contra a direita autoritária.

Manoel Correia de Andrade

- membro do Conselho Científico do International Council for Research in Cooperative Development, na Suíça, ele foi um dos mais prolíficos produtores de pesquisas sobre a realidade do Nordeste brasileiro, sendo decisivo para a atuação de toda política de integração regional no país. Outrossim atuou contra a direita militarista.

Gilberto Freyre

- um dos cientistas brasileiros que mais influenciaram a Sociologia no mundo, inclusive, todos os trabalhos do já citado Manoel Correia de Andrade. Foi um polímata e recebeu diversos prêmios internacionais como a Ordem do Império Britânico e a Ordem Nacional da Legião de Honra da França. Chegou a apoiar os militares contra o avanço do stalinismo mas, vendo que a ditadura da direita se perpetuava, passou a atuar pela redemocratização, assim como tinha feito na era Vargas.

Milton Santos

- uma das maiores referências mundiais sobre a Geografia do mundo em desenvolvimento, e também sobre o fenômeno globalização. Foi professor da Universidade de Sorbonne, da Universidade de Columbia, Universidade de Toronto, da Universidade de Dar es Salaam e emérito da USP. Produziu trabalhos também para a OIT, a OEA e a ONU. Também escreveu dezenas de livros traduzidos na França, Reino Unido, Portugal, Japão e Espanha. Mais um nordestino que atuou contra o poder nas mãos da direita militarista no Brasil.

Impressionante como uma lista rápida e simples já esclarece bastante que a sanha de bolsonaristas contra nordestinos, além de crime, é imoral, burra e vergonhosa. Uma hipótese mais interessante para explicar o antagonismo dos eleitores dessa região com relação ao atual governo seria supor um raciocínio pragmático. É provável que a concentração de quase metade de todos os militares do país no Sudeste não seja uma simples coincidência com a extrema desigualdade regional.  

 Trata-se de um povo que, como qualquer outro, tem memória, e sabe que há décadas foi escanteado do desenvolvimento nacional com a tomada de poder pela direita militarista, mas que há poucos anos existiu um outro governo que valorizou bem mais a região. Ao saber desses exemplos, ninguém tem mais desculpas esfarrapadas para ser preconceituoso, a não ser que queira e assuma que tem orgulho disso. Porém eu, sem pretensão de me achar melhor nem pior que ninguém, tenho orgulho de ser nordestino.


Romero Maia é gestor de pesquisas do IBGE, e colaborador do Grupo de Métodos de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPE.


romeromaia@gmail.com

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