Eu ainda vi Pelé jogar



Artigo originalmente publicado  no  jornal O Estado de São Paulo, em 30/12/2022 | 15h07


Uma forma bem brasileira de provocar uma inveja insuperável sempre foi dizer, como quem não quer nada, para alguém nascido depois dos anos 70: "Eu vi Pelé jogar." Nasci num mundo onde ele já era grande. O maior. E não só no futebol. Em cada área da atividade humana tinha um. Falavam-me dos "Pelés da Medicina", dos  "Pelés do Violão" e até de uns tais de "Pelés do Vôlei" com o qual as pessoas mostravam, ironicamente, que tinham gostado muito da "geração de prata" de Bebeto de Freitas.


Até que um dia, ainda criança, vi na televisão um anúncio. Ia ter um jogo do Pelé, ao vivo, pela seleção. É o quê? Eu só podia estar sonhando. Mas meu pai só falava nisso. Na escola só falavam nisso. Eu ia ver Pelé jogar, como se dizia na época, ao vivo e "a cores".


O jogo era no fim da tarde e eu estudava de manhã. Como minha mãe era professora, ela saía de casa cedo comigo e éramos um dos primeiros a chegar na escola. Para isso, eu criei o costume de acordar às 5am. O jogo seria só no fim da tarde. Tudo certo, então. Ensino Fundamental nenhum, nem mesmo as debilitantes tarefas de casa, impediriam-me de assistir àquele acontecimento.


Cheguei em casa. Liguei a TV imediatamente já durante o almoço. Era meu "esquenta", embora eu não soubesse que esse ritual existia. Mas a ansiedade exigia que já fossem tomadas providências para se preparar emocionalmente. A ideia era passar a tarde em frente à televisão. E passei. E vi. Entrei para o seleto grupo  de brasileiros contemporâneos, só superado pelos que viram presencialmente em estádios.


Aquilo era uma quarta-feira, dia 31 de outubro de 1990. Conferi aqui no Google. Não se ouvia carros nas ruas. Tudo era atenção e comoção. Eu não sabia, mas não havia conflito político que resistisse.  O país se unia. O IBOPE explodia, assim como a inflação do Plano Collor que bateu os 1.621% naquele ano. Tudo se curvava à expectativa sobre a atuação do camisa 10 mais famoso da História. As pessoas eram agraciadas por Sua Majestade com as dádivas de concórdia irrestrita, silêncio e atenção plena. Os políticos e alto empresariado, claro, por isso, o amavam ainda mais. Conheci, ali, aquilo que diziam ser a mística do rei. Mística política, acrescentaria agora mais velho. Pelo que me lembro, ele não fez muita coisa na partida. Nem precisava. Para mim, bastava poder dizer, até hoje, que eu ainda vi Pelé jogar.



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