A confusão de uma república inesperada

D. Pedro II e Deodoro da Fonseca na época da Guerra do Paraguai
D. Pedro II e Deodoro da Fonseca na época da Guerra do Paraguai


"O coração humano é
a região do inesperado."
Machado de Assis 


Proclamar uma república usando para isso um golpe de Estado com o intuito de salvar a própria pele, depois de uma desavença com um ministro do rei que o havia homenageado como herói de guerra. Isso resume como um fato histórico pode ser complicado de se entender. 

Se quando vamos explicar as motivações dos acontecimentos de nossas próprias vidas encontramos dificuldade de sermos claros, explicar processos coletivos e que dizem respeito a outras pessoas, que viviam em circunstâncias diferentes das nossas, é sempre um desafio para poucos bem intencionados e fundamentados.

Ajuda nesse processo de entender o passado a proposição de categorias. Elas são termos semânticos que nos auxiliam a enquadrar dados e fatos sob uma classificação razoável. Aquilo que aconteceu em 15 de novembro de 1889, no Rio de Janeiro, pela sua rapidez, pelo uso da força militar contra oponentes, e pelo objetivo de destituir os membros do poder constituído sob ameaça de violência e prisão em caso de resistência, pode ser indubitavelmente categorizado como um golpe. Perceba que os fins não nomeiam os meios. Ter sido usada a causa republicana, que era um forte apelo de legitimação no momento contra o sistema monárquico, foi mais uma questão de oportunismo que de convicção.

O Marechal Deodoro já era um militar bastante famoso no país por causa de suas condecoradas ações numa das mais horrendas guerras do mundo contemporâneo. Na Guerra do Paraguai morreram milhares de homens, adultos, jovens e crianças, deixando o país sem cerca de 25% de seu  território e de sua população, implicando hábitos de poligamia informal compulsória por excesso de viúvas, solteiras e órfãos, e jogando a população numa crise de governabilidade que só foi superada hoje, no  século XXI. Porém, dado que no mundo militar o que importa é se a missão contra o inimigo foi ou não cumprida, sem entrar no mérito do teor ético ou moral da missão, ele era um homem prestigiado pelo poder monárquico situado no Sudeste. Embora nordestino, filho de pernambucano, havia servido no RJ mas morava e trabalhava no RS por razões práticas, pertinho do palco de sua façanha bélica.

Aqui vale uma pequena digressão. O nome completo dessa figura emblemática era Manuel Deodoro da Fonseca. Como descrito pelo historiador e antropólogo Antonio Risério, o último sobrenome era, na verdade, Galvão. Mas esse havia sido ocultado em decorrência de uma decisão de seu pai, Manuel Mendes da Fonseca Galvão, que se revoltara contra o preconceito de parte da família Galvão contra sua namorada, Rosa Maria Paulina, de traços indígenas. Ela que viria a ser a mãe de Deodoro e de outros 9 filhos. Isso faz do marechal parte da árvore genealógica, como tio-tataravô, deste autor de blog que ora escreve. E em virtude desse lastro nas terras do pai, que havia servido no Recife, Deodoro foi enviado para atuar também na contenção da Revolução Praieira. Curioso notar como o mundo dá voltas. Quem diria que o filho de um amor proibido, nascido e criado em berço de militares devotados ao reinado, iniciaria sem premeditação a queda da monarquia brasileira?

A primeira faísca desses processos imprevisíveis da vida social foi uma simples carta na qual Deodoro defendia um amigo abolicionista e criticava o ministro da guerra, à época (1884) Franco de Sá, a serviço de D. Pedro II. Essa proximidade com ideias abolicionistas naquela época era correlata a alguma aproximação com a ideia de república. Mas não necessariamente. Deodoro era militar exemplar, cão fiel do  regime que defendeu e que lhe concedeu honras, não tinha quaisquer inquietações revolucionárias, e sabia muito bem que o Exército tinha como uma de suas funções caçar escravos que fugiam.

Só que antes mesmo de afrontar o ministro, este terminou caindo e foi substituído  por outro... ainda pior. Era um rival de juventude de Deodoro, quando ambos se apaixonaram pela mesma garota e nunca mais conseguiram se perdoar por isso. Agora era com ele que Deodoro, para defender seu amigo de farda, teria que se indispor. Já fazia muito tempo do caso do amor em comum e Deodoro, também chamado de "Maneco" por esses velhos amigos, já era um idoso em 1889. Ele também não havia passado os últimos 40 anos mantendo contato nem sequer stalkeando sua paixão pelas redes sociais e... e isso não mudava nada no tamanho de seu ressentimento.

É o que o famoso psiquiatra Stutz chama de "labirinto da mágoa". Um ressentimento só se cura com terapia, fortíssima intenção, ou um fato novo e muito positivo que quebra a inércia causada pela ofensa percebida. Nada de novo sob o Sol no que concerne ao homo sapiens, cuja mente retém com mais força o que é ameaçador para, não raro equivocadamente, redobrar a segurança e permanecer longe do perigo. É assim que funciona a vida natural. Deodoro não conseguiu aceitar receber ordens desse novo ministro. Mais que isso, tinha certeza que sofreria perseguições pessoais.

Assim, mesmo extremamente titubeante sobre a viabilidade de uma república num país "de pessoas sem educação e que têm pouco respeito umas pelas outras", parafraseando trecho de uma carta que escreveu para seu sobrinho empolgado pelas ideias republicanas, ele chegou à conclusão que seria muito arriscado não tentar tomar o poder para si. Como todo bom conservador, o cálculo do melhor para si se traveste da melhor opção para todos. Um artifício de cálculo às avessas que gerava ganhos na imagem pessoal, pois poderia ser identificado como um homem velho mas alinhado com novas ideias, tirava de cena um regime circunstancialmente antagonista, e de quebra jogava para debaixo do tapete o que ele mesmo considerava ser a enorme confusão de uma república dado que o próprio assumiria a presidência.

Desde então, nesses 134 anos, o Brasil teve mais cinco tentativas de golpe e um plebiscito que puseram à prova "a solução de Deodoro". A confusão foi grande. Tanto que esse primeiro presidente renunciou pouco tempo depois. Contudo, a coisa da república resiste até hoje. Mais por possibilitar a expansão paulatina de espaços democráticos, movimento inevitável pelo próprio teor das ideias republicanas, que por mérito de uma decisão inesperada de um marechal conservador.  

. Romero Maia
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