Ser feliz não tem a ver com o "carpe diem" que lhe ensinaram




“Deus fez do arrependimento
a virtude dos mortais.”
Voltaire

Passado o carnaval, vai se aproximando a semana santa. Pra quem não lembra ou quer esquecer, um feriado mais calmo e de orações solenes cai bem. O carnaval foram aqueles dias propícios para fazer qualquer coisa licenciosa sem tanta autocrítica. Mas fazer muita coisa sem pensar antecede dias bastante pensativos com relação às consequências. Os entusiastas chegam a falar na suspensão total da moralidade. Não chegam a avisar, infelizmente, que é temporária... e começa o tormento dos arrependimentos.

Um amigo meu diz que ressaca moral é mais frequente que a ressaca alcoólica porque dá em quem bebe e em quem não bebe. Não só de álcool vivem as más memórias, mas também da empolgação do folião perdido na turba. Entre os ébrios arrependidos, os agraciados pela amnésia alcoólica vivem seus dias angustiantes, naquela aflição do camarada que desconfia profundamente ter feito aquilo que mais temia. E se desconfia, sabe que provavelmente fez.

Não se trata aqui de achar que alguém precisa ter conduta exemplar, sem a exceção saudável dos dias de Momo. Muito menos de fazer moralismo barato. O que segue é apenas um conselho que não me foi solicitado. Se eu tivesse de dar conselho a alguém, eu diria: não viva como se você fosse morrer amanhã. 

Isso vale tanto para um feriado quanto para o resto dos dias do ano. Enquanto conselho a ideia é ter uma atitude um pouco mais refletida e diferente do clichê. Serve especialmente para entusiastas apressados do antigo lema carpe diem terem uma interpretação mais madura da expressão latina, talvez a mais popular entre jovens.

Sua escrita original, do poeta romano Horácio, está relacionada à capacidade de colher ou selecionar (escolher) bem as oportunidades que surgem num dia. Ou seja, “esteja atento” seria a melhor tradução livre. Atento a quê? Ao que lhe ocorre hoje, já que o amanhã é menos previsível. Perceba que isso não traz a sensação de afobação do “aproveite o dia”, do que implicitamente se deduz a continuação: “porque você vai morrer em breve”. Isso equivaleria olhar “de frente para o sol”, um tipo de experiência que turva a capacidade de enxergar todas as demais coisas da vida, drena muito a energia do cérebro e causa pressa, ânsia de fuga, em vez de calma. Lembrando que a pressa é inimiga da perfeição e só a calma é sinônimo de saúde e da sensação de felicidade.

O detalhe é: só sabe fazer boas escolhas no dia quem já decidiu para onde está indo, apesar de tudo. Não há pensamento mais devastador para o humano do que obstinar-se com própria morte. Quem não se ilude com a eternidade, não consegue afinar seu espírito com algo significativo. O curto prazo é o lapso do desespero, o estopim da gastrite crônica, a armadilha para as virtudes fundamentais, o reino dos instintos e do medo, uma condição de pobreza. É a derrocada da paciência e ocaso da racionalidade. O mistério que cerca nossa condição de vivos impõe essa ilusão. “Nem o sol nem a morte podem ser olhados fixamente”, diz a máxima 26 de La Rochefoucauld.

Quem começaria uma série de exercícios físicos diários com a perspectiva de morrer amanhã? Para que tentar escrever um livro se evidentemente nenhum livro que se preze pode ser concluído em 24 horas? A intenção de aproveitar tudo o possível de um dia é crueldade consigo mesmo, uma autossabotagem.

Você pode pensar que é possível, sim, fazer bastante coisa em apenas um dia. De fato. Até coisas grandiosas. Por exemplo, em fevereiro de 2024, com tão poucos dias úteis, conseguiram produzir uma média de 6,5 mil carros todos os dias no Brasil. Enfileirados em fila dupla, geram um acréscimo diário de congestionamento de cerca de 15 km. 

Sem entrar no mérito do que isso representa em termos de valores que literalmente movem nossa sociedade, esses dados de grande monta não se sustentam como contra-argumento à medida que estamos trocando a observação do processo pela observação do resultado do que pode ser feito em apenas um dia.

O correto é inquirir o tempo (processo) de capacitação para cada uma das ocupações necessárias à montagem e venda de carros, e multiplicar pelo número de pessoas envolvidas em toda cadeia de produção, multiplicando novamente pelo tempo que gastaram para realização das atividades laborais que são responsáveis diretas por essa produção. Todo esse tempo acumulado foi preenchido por vidas que se desprenderam do imediatismo e passaram por processos de maturação e realização. O mundo do trabalho, se for vivido em condições dignas, é a maior das escolas e exige paciência e disciplina. O resultado é a expressão desse acordo de investimentos simultâneos em prol de algo útil para a coletividade.

Pensar dessa maneira deixa claro que para toda atividade humana há uma aposta, consciente ou inconsciente, no futuro. Estamos condenados a correr riscos. A previsibilidade de qualquer evento, o que inclui estar vivo ou não, cai à medida que nos afastamos do momento presente. Entretanto, não há ciência sem cronogramas de longo prazo. O projeto Genoma, por exemplo, durou 14 anos para sequenciar 3 bilhões de bases do nosso DNA, mobilizando pesquisadores de vários países. 

Qual deles começaria um projeto como esse se exigisse como pré-requisito, em 1990, ainda estar vinculado à pesquisa em 2003? Podiam ser feitas estimativas baseadas no estilo de vida e herança genética de cada pessoa, mas ninguém seria capaz de garantir nada. Tampouco abrir mão dessa oportunidade de conhecimento. O indispensável na vida não é viver cada segundo como se fosse o último. Mas escolher nossos objetivos e saber quanto de tempo eles exigem. O que quase sempre é bem mais do que um dia. 

Carpe diem é isso. Resta, e isso que resta é que é fabuloso, viver em nome de propósitos viáveis diante de nosso tempo de vida. Se eles animam o ímpeto de realização, eles terão o efeito colateral de aguçarem nossa visão das oportunidades de concretizá-los. Isso não implica de forma alguma perder totalmente a morte de vista, fingir que não existe, mas apreciá-la com moderação, como impulso para realização e esperança, usando sabiamente outra expressão latina complementar chamada "memento mori".

Essa é a mensagem básica de Viktor Frankl, psiquiatra austríaco que sobreviveu a anos de prisão em campo de concentração, mas perdeu esposa, pais e o irmão. Depois de retornar à sociedade, criou a terceira escola de Psicologia de Viena, a partir das anotações de suas observações realizadas durante o cárcere. 

Toda vontade de obter um sentido maior (inclusive, de preferência, maior que apenas interesses pessoais) no que se faz ou se vive tem um pacto sagrado com a esperança, e esta, por sua vez, projeta o indivíduo adiante, para o amorfo futuro que ele deseja moldar mesmo que ainda não saiba bem como fazê-lo. O amanhã é essencialmente idealista. Não está no mundo sensível nem nunca estará, porque é o lugar onde sempre cabe algum nível do inesperado, de aleatoriedade. Mas é parte integrante da nossa sobrevivência saudável se quisermos viver o presente com a tranquilidade do tipo ataraxia.

Se for muito difícil flertar com o futuro, seja por causa de idade avançada ou pessimismo teimoso, minta por misericórdia para si mesmo. Não se preocupe com a gravidade deste tipo de mentira, pois é legítima nesse caso. Acredite num futuro que mexa com sua emoção e que, ao menos na sua avaliação estrita, confira uma certa vontade de agir na sua construção. Quem planta tâmaras nem sempre colhe tâmaras, mas de alguma forma se orgulha de fazê-lo ou, na pior das hipóteses, resigna-se que precisa ser feito, e faz. Nunca é tarde para aceitar o fato que muitas coisas importantes não dizem respeito apenas à individualidade.

E o passado? As marcas indeléveis do carnaval? O que fazer com todo esse grude de jaca nos pés e esses hematomas pelo corpo? O que passou é também outra oportunidade de escolhermos. Essa escolha é mais complicada porque não temos total controle da nossa capacidade de esquecimento. Mas podemos tentar meditar sobre o que serve de aprendizado, e com o que podemos distrair nossa mente para ajudar a esvaziar o que for lixo traumático. Carpe praeterium. Apenas isso. 

O complicado é conhecer-se o suficiente para saber quais as lições tomar de cada uma das nossas vivências, especialmente as constrangedoras. Neste ponto, fica mais fácil sintetizar um clichê: escolha começar a viver o futuro hoje, e do passado fique apenas com as lições que ajudam a realização desse cenário. Talvez você dê risadas de felicidade ao perceber que o mais precioso do que já passou é exatamente a, agora valiosa, ressaca moral. Lembrar e se arrepender não deixa de ser uma evidência que você aprendeu a lição e chegou melhor no futuro que ora acontece.

Romero Maia
Instagram: @SimpliciDados

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