Há cerca de 2 anos, o então arcebispo de Olinda e
Recife, D. José Cardoso Sobrinho, decidiu condenar veementemente o aborto de
uma gravidez oriunda de estupro, pedofilia, quase-incesto, e que ainda impunha
sério risco de morte à gestante dessa tragédia humana. Médicos foram
excomungados, e vários intelectuais, políticos e formadores de opinião foram
criticados a reboque de uma visão hermética da exegese católica. A seguir,
artigo escrito na época, no calor dos acontecimentos, num 8 de março, sobre
direitos reprodutivos e um pouco da história da Igreja Católica Apostólica
Romana. Tentei construir uma explicação sobre o porquê da postura (ou
impostura) radical do arcebispo:
O que é mais grave? Estuprar alguém ou realizar um aborto? Como se isso fosse uma pergunta séria, ainda mais no dia internacional da mulher, vou tentar responder sucintamente.
Estupro é, por definição, um atentado sexual violento, perpetrado por homens contra mulheres, em total desrespeito a condição de liberdade inerente a todo ser humano. Pode ser seguido ou não de morte da vítima, inclusive por meio de suicídio. Cada cultura possui uma forma de lidar com esse tipo de prática violenta. Há de se trazer à tona, para efeito de relativização, que em parte da cultura árabe é factível, mas não menos chocante, que vítimas de estupros sejam condenadas. Como no caso da jovem de 18 anos que foi estuprada 14 vezes por sete homens em 2006, em Qatif, na Arábia Saudita. Os acusados receberam pena leve, que variou de 2 a 9 anos dependendo da interpretação do juiz sobre o comportamento de cada um dos acusados durante o crime. A jovem, por sua vez, foi julgada libidinosa e, portanto, incentivadora do ato criminoso. Recebeu 200 chibatadas e foi presa por 6 meses. O curioso é que seu marido também foi estuprado na ocasião.
Aborto é o ato de interromper deliberadamente a gravidez. A princípio, se nos atermos ao objeto “gravidez”, ele não atenta contra a liberdade uma vez que a gravidez pertence à mulher ou, quando em situações imbuídas pela livre escolha sexual, ao casal responsável. Interromper a gravidez é, a princípio, algo bem diferente do estupro. Mas se analisarmos pelo ponto de vista do embrião ou, mais tardiamente, do feto, identificamos os limites da legitimidade da escolha do casal. É arbitrário desconsiderar o atentado contra a vida mesmo que em condição pré-matura. O direito ao aborto por parte da mulher ou do casal esbarra no direito à vida. Todos, para serem o que são, precisam passar pelas fases embrionária e fetal. Com efeito, ser morto nessas fases não guarda nenhuma diferença tão fundamental.
Podemos seguir uma linha de raciocínio que nos leva até a condição especial do momento do encontro de gametas que dá origem ao impulso vital dos genes. Cada impulso é algo único, e concretiza uma manifestação singular da vida. O que favorece a vida é esse encontro. Todos nós dependemos disso. Já fomos nossa antítese e daí começa a síntese do que somos, a história de nossa especificidade. Tal historia, torna-se ainda mais particularizada quando nos desvinculamos da condição intrauterina e iniciamos nossa história social (sem esquecer que para alguns ela já começa dentro do útero). Essa complexidade do tema, além de ter de lidar com as implicações sérias na saúde pública que não abordo neste texto, mostra que as soluções mais ponderadas são as mais exeqüíveis. Uma pergunta propositalmente tautológica por ilustrar a profundidade desse dilema seria, então: a partir de que momento da vida a sociedade deve reconhecer o direito à vida?
O que é mais grave? Estuprar alguém ou realizar um aborto? Como se isso fosse uma pergunta séria, ainda mais no dia internacional da mulher, vou tentar responder sucintamente.
Estupro é, por definição, um atentado sexual violento, perpetrado por homens contra mulheres, em total desrespeito a condição de liberdade inerente a todo ser humano. Pode ser seguido ou não de morte da vítima, inclusive por meio de suicídio. Cada cultura possui uma forma de lidar com esse tipo de prática violenta. Há de se trazer à tona, para efeito de relativização, que em parte da cultura árabe é factível, mas não menos chocante, que vítimas de estupros sejam condenadas. Como no caso da jovem de 18 anos que foi estuprada 14 vezes por sete homens em 2006, em Qatif, na Arábia Saudita. Os acusados receberam pena leve, que variou de 2 a 9 anos dependendo da interpretação do juiz sobre o comportamento de cada um dos acusados durante o crime. A jovem, por sua vez, foi julgada libidinosa e, portanto, incentivadora do ato criminoso. Recebeu 200 chibatadas e foi presa por 6 meses. O curioso é que seu marido também foi estuprado na ocasião.
Aborto é o ato de interromper deliberadamente a gravidez. A princípio, se nos atermos ao objeto “gravidez”, ele não atenta contra a liberdade uma vez que a gravidez pertence à mulher ou, quando em situações imbuídas pela livre escolha sexual, ao casal responsável. Interromper a gravidez é, a princípio, algo bem diferente do estupro. Mas se analisarmos pelo ponto de vista do embrião ou, mais tardiamente, do feto, identificamos os limites da legitimidade da escolha do casal. É arbitrário desconsiderar o atentado contra a vida mesmo que em condição pré-matura. O direito ao aborto por parte da mulher ou do casal esbarra no direito à vida. Todos, para serem o que são, precisam passar pelas fases embrionária e fetal. Com efeito, ser morto nessas fases não guarda nenhuma diferença tão fundamental.
Podemos seguir uma linha de raciocínio que nos leva até a condição especial do momento do encontro de gametas que dá origem ao impulso vital dos genes. Cada impulso é algo único, e concretiza uma manifestação singular da vida. O que favorece a vida é esse encontro. Todos nós dependemos disso. Já fomos nossa antítese e daí começa a síntese do que somos, a história de nossa especificidade. Tal historia, torna-se ainda mais particularizada quando nos desvinculamos da condição intrauterina e iniciamos nossa história social (sem esquecer que para alguns ela já começa dentro do útero). Essa complexidade do tema, além de ter de lidar com as implicações sérias na saúde pública que não abordo neste texto, mostra que as soluções mais ponderadas são as mais exeqüíveis. Uma pergunta propositalmente tautológica por ilustrar a profundidade desse dilema seria, então: a partir de que momento da vida a sociedade deve reconhecer o direito à vida?
Quando não se pode chegar em conclusões plenamente
objetivas, dado que os problemas possuem forte cunho moral, a recomendação é
que se apele para o bom-senso. Sem radicalismos é que devemos analisar a
conjunção de dois fatos extremamente delicados, estupro e aborto. O concerto
aleatório das circunstâncias apresenta toda sorte de situação para nos lançar à
reflexão. O diferencial está em como fundamentaremos nosso esforço intelectual
orientado para decisão diante do dilema. Até onde teremos coragem de ir antes
de decidir, e até quando teremos energia e tempo para seguir ponderando são
elementos que limitam a perfeição das escolhas humanas. Portanto, num debate
deste calibre não se deve almejar a verdade absoluta. Fica fácil desistir e se
render aos desígnios de Deus que, por sua vez, nunca avalia caso a caso porque
está subsumido na tradição. Ele tem verdades prontas, atemporais, cujas
interpretações dizem mais sobre os sujeitos que as empregam em ocasiões
especiais do que sobre a Sua natureza. Molestar crianças pode ser interpretado
como um ato de contato íntimo com a pureza máxima sob o céu e, por isso, de
proximidade seminal com a essência de Deus, se assim quiser interpretar algum
bispo pedófilo, como mostra o vídeo http://www.youtube.com/watch?v=dSeroPHcWZw> .
E por falar em crianças molestadas, chegamos
finalmente ao caso da menina recifense de 9 anos que, por ser estuprada pelo
padrasto, estava vítima de uma gravidez de alto risco, tanto para ela quanto
para os bebês. A recomendação médica nesses casos, respaldada pela lei
brasileira, é abortar o quanto antes a gravidez. Temos uma situação, digamos
assim, extrema.
Nada simples de se avaliar, por sinal. Há estupro,
há necessidade objetiva de aborto, há pedofilia e há pouco tempo para se tomar
uma decisão. Mas dos diversos métodos de análise disponíveis, o arcebispo de
Olinda e Recife, D. José Cardoso Sobrinho, optou pela hierarquização dos fatos
envolvidos no caso. Ele simplesmente, a partir de uma interpretação dos
desígnios de Deus que, como dito acima, revelam muito mais os seus valores
pessoais, estabeleceu que o aborto é mais grave que o estupro... Se o debate é
sobre direitos, temos o direito de pelo menos tentar interpretar a lógica desse
bizarro malabarismo intelectual do arcebispo.
Vamos por partes: D. José não é santo. É homem como qualquer outro, e assim como qualquer outro homem não corre o risco de engravidar. Sim, eu sei, os santos também não engravidam. Tudo bem. Mas não foi isso que quis dizer quando afirmei que D. José não é um santo. Mas continuemos. Além disso, ele é celibatário, portanto espera-se que nunca engravide alguém. Sabe-se também que D. José representa a ala conservadora de uma organização marcada por inúmeros casos de estupro e perversão sexual. Talvez seja até desnecessário expor fatos acerca dessa realidade. Mas vamos a alguns poucos: segundo o New York Times, só em Boston, desde 1940, 789 crianças, pelo menos, foram molestadas sexualmente por 250 padres e outros funcionários da arquidiocese Católica Romana. Repito, 250 padres e outros membros da Igreja. O que não deixa dúvidas quanto ao caráter generalizado dessa conduta na Igreja.
Vamos por partes: D. José não é santo. É homem como qualquer outro, e assim como qualquer outro homem não corre o risco de engravidar. Sim, eu sei, os santos também não engravidam. Tudo bem. Mas não foi isso que quis dizer quando afirmei que D. José não é um santo. Mas continuemos. Além disso, ele é celibatário, portanto espera-se que nunca engravide alguém. Sabe-se também que D. José representa a ala conservadora de uma organização marcada por inúmeros casos de estupro e perversão sexual. Talvez seja até desnecessário expor fatos acerca dessa realidade. Mas vamos a alguns poucos: segundo o New York Times, só em Boston, desde 1940, 789 crianças, pelo menos, foram molestadas sexualmente por 250 padres e outros funcionários da arquidiocese Católica Romana. Repito, 250 padres e outros membros da Igreja. O que não deixa dúvidas quanto ao caráter generalizado dessa conduta na Igreja.
Além desse e de inúmeros outros casos nos cinco
continentes, devemos destacar o caso do monsenhor Jean-Michel Di Falco, bispo
auxiliar de Paris e uma das autoridades religiosas mais respeitadas na França,
acusado por estuprar crianças na década de 70; e o caso do Padre Helinho,
diretor de um colégio em São
Paulo que molestou três crianças. Em sua condenação, o
desembargador ironizou dizendo “que só mesmo a providência divina poderia ter
piedade da conduta do religioso”.
Se quisermos voltar no tempo para não precisarmos ouvir que isso é uma conseqüência da triste secularização dos valores na sociedade contemporânea que abala inclusive a Igreja, temos que na Idade Média, segundo o historiador Anderson Alcântara, a Igreja havia proibido que mulheres cantassem no coral das igrejas. Para não ficar sem as necessárias vozes sopranos, os representantes de Deus encontraram a seguinte solução: castrar jovens meninos cuja voz tenha sido considerada bela. Assim, nos corais não faltariam nunca os sopranos e contraltos. E sabemos disso hoje porque era uma prática institucionalizada da Santa Igreja. Enfim, não é de se admirar a posição do arcebispo. Sendo membro da Igreja, ele seria incoerente caso julgasse estupro mais grave que aborto. Padres não abortam, não é mesmo? Trata-se de uma linha de raciocínio é completamente inapropriada ao debate, desprovida de qualquer sensibilidade ou requinte. Ossos de uma teologia atávica, que passa ao largo da ponderação e da reflexão crítica. E ainda ousa a recomendá-la para o Presidente! O arcebispo precisa da ajuda de um bom filósofo, ou melhor, de uma filósofa.
Se quisermos voltar no tempo para não precisarmos ouvir que isso é uma conseqüência da triste secularização dos valores na sociedade contemporânea que abala inclusive a Igreja, temos que na Idade Média, segundo o historiador Anderson Alcântara, a Igreja havia proibido que mulheres cantassem no coral das igrejas. Para não ficar sem as necessárias vozes sopranos, os representantes de Deus encontraram a seguinte solução: castrar jovens meninos cuja voz tenha sido considerada bela. Assim, nos corais não faltariam nunca os sopranos e contraltos. E sabemos disso hoje porque era uma prática institucionalizada da Santa Igreja. Enfim, não é de se admirar a posição do arcebispo. Sendo membro da Igreja, ele seria incoerente caso julgasse estupro mais grave que aborto. Padres não abortam, não é mesmo? Trata-se de uma linha de raciocínio é completamente inapropriada ao debate, desprovida de qualquer sensibilidade ou requinte. Ossos de uma teologia atávica, que passa ao largo da ponderação e da reflexão crítica. E ainda ousa a recomendá-la para o Presidente! O arcebispo precisa da ajuda de um bom filósofo, ou melhor, de uma filósofa.