artigo premiado em Festival Internacional de Comunicação que ocorreu
na Holanda, entre 30 de maio a 6 de junho deste ano.
Ideais
permeiam as mentes pelo mundo. Oscilam do extremo autocentrado ao
alocentrado. Independente disso, anseiam transformação. O real não
basta, incomoda e aflige o idealista que se sente impelido a
transcendê-lo, ou melhor, fazê-lo transcender. A possibilidade de
antever o extraordinário atesta a existência da liberdade. Caso
contrário, os limites da consciência idealista estariam totalmente
presos ao real e, portanto, seriam realistas, simples reproduções.
A liberdade é, não por acaso mas a rigor, a parteira dos ideais
que, uma vez postos no mundo, devem inspirar amor e partilha,
incondicionalmente.
O
amor é conservador na perspectiva individual, mas profundamente
revolucionário quando orientado para ideais coletivos. Essa seria a
essência do conflito que envolve o ato de amar alguém. Para o
amante conflui a força de manutenção mais profunda, o ímpeto de
preservação da pessoa amada tal como ela é. Sua integridade, seu
bem-estar, sua proximidade. O legado do amor romântico está na base
dessa submissão da mudança à permanência. Por outro lado, na
direção de um ideal, toda a capacidade de desprendimento e
resistência é mobilizada. O amante romântico exige sacrifícios
para crer na recíproca do ser amado. O idealista se sacrifica porque
crê convicto.
A
convicção daquele que conduz consigo um projeto de transformação
da realidade precisa ser eminentemente lógica. Posto que sucede
apartada de observações empíricas. Se o ente romântico é refém
da experiência, o idealista que ama é livre. Aquele crê porque
observa e pondera, este porque compreende racionalmente e sente amor
à expansão de seu horizonte de possíveis. Enquanto o amante espera
ser amado, a imaginação do visionário não aguarda, mas promove e
incentiva, por amor, a mudança que quer ver no mundo.
O
autêntico idealista também não impõe ao mundo seu desejo. Assim o
fazem os amantes uns com os outros no afã de se sentirem aceitos.
Quem ama um grande ideal, vive-o todos os dias a despeito das
circunstâncias e de sua aceitação. É incondicional justamente
porque é livre. Uma liberdade tão plena, fundada no amor, que não
requer a replicação de si para se sustentar. Assim, o idealista é
um altruísta por excelência. Faz o que ama e é retroalimentado
pelo amor que sente. O amor é o começo e o fim de sua ação, e o
ideal é sua expressão no tempo e no espaço. Está sempre atrelado
intrinsecamente a uma necessidade de aperfeiçoamento do real até a
condição ideal almejada.
Ainda
que se fale de uma postura idealista autêntica, um ideal não é
definido pelo seu portador. Este, sim, pode ser definido por aquele,
porque uma imaginação utópica atende primeiro por sua lógica
interna, e não pelo nome do sujeito pensante. Um ideal tem suas
linhas expressas no entendimento com relação ao problema que
procura superar, e na clareza quanto aos meios através dos quais
orienta sua caminhada. Todavia, a percepção de um problema real
traz consigo elementos de conflito sentidos como desconforto
psicológico e sentimento de impotência. Da percepção à ação
existem mais zonas de conflito, seja em decorrência de obstáculos
criados por outros grupos, seja pelos custos hediondos que recaem
sobre os que não priorizam sua autopreservação num ambiente de
incertezas.
O
processo de concretização de uma ideal é, por princípio,
revolucionário, e por isso não pode negar o conflito. Mas, se para
conviver com o conflito houver de negar o amor e a liberdade,
desfaz-se o ideal. É real. É ilógico que a mudança idealista
proceda por um caminho que reforce o real. Nem todo real, entretanto,
reduz-se ao caos. Ressalva da qual surge a prudência como uma arte
de diagnosticar as várias esferas do real, com o máximo grau de
discernimento objetivo. Nesse processo, aparece a necessidade do
diálogo como mediador da objetividade. Uma avaliação que se faz só
não pode ser outra coisa senão subjetiva. O critério mínimo da
objetividade, além dos cuidados atinentes ao método, é a percepção
do outro. Um ideal, portanto, possui o atributo de ser sempre algo
coletivo. Em síntese: amor, liberdade e partilha.
Mas ainda resta frouxo o delineamento de um ideal. Amor e liberdade nunca foram conceitos estanques. Além da grande variação semântica intrínseca, eles ainda podem ser observados em sérios conflitos coexistenciais, um com relação ao outro. Vejamos o amor romântico. É provável que o amor a dois, o amor construído no nascedouro da modernidade européia, reforce colateralmente algumas mazelas do real ao invés de negá-las. O começo de um relacionamento amoroso de pares promove uma alegria imensa, da magnitude de seu risco, intensamente individualizada no sujeito amado, e inadvertidamente negligente com seu transcurso no tempo. Seu êxtase provém do suposto triunfo sobre a saudade, a rejeição, a frustração sexual e a solidão. A posse possibilita a superação da saudade, sentir-se desejado afasta o sentimento de rejeição, a paixão sacia a libido, e a companhia afugenta a solidão. Contudo, o ponto de inflexão está atrelado à ideia de conservação. Dado que o amante orienta seu todo seu sentimento para um sujeito amado específico, este consubstanciação amorosa não pode ser outra. Mas no transcurso do tempo a permanência é contingente. Tudo deixa de ser, com o tempo, aquilo que é. Ontologicamente, dizemos que uma coisa pode estar vindo a ser outra enquanto ela é. Nesse contexto romântico, a mudança se torna ameaçadora, e o projeto amoroso, uma ilusão. A libido se satura pela rotina; solidão, a dois; e volta o avassalador medo da rejeição. Dessa vez, da rejeição pelo novo, novos projetos, novos amores.
Ao dedicar-se por um ideal, o amor reestrutura-se. Não requer mais a conservação do estado de coisas. O ideal é justamente a mudança almejada. Deixa de ser compulsivo pela posse, visto que o ideal é partilha. A medo da solidão também sucumbe à coletividade e ao projeto de futuro comum. Desconhece a saudade porque o ideal está totalmente ligado ao futuro. O sexo não é mais um tipo de sustentáculo do amor. E a frustração insinua-se como o único risco. De grau menor, diga-se. Alguém se frustra pela não concretização de seu ideal, mas jamais com seu ideal. No rigor e no excesso, podemos inclusive negar a possibilidade de frustração. O idealista que ama, ama seu ideal em estado abstrato. O amará, portanto, mesmo enquanto ele não se concretizar. O amará até o fim porque a incondicionalidade para amar está dada desde o início.
A
liberdade é a condição de escolher qualquer ação ou pensamento
até o ponto em que tal escolha não seja um óbice ao talante de
outrem. Diferente disso, não há liberdade. Seria algo que se
aniquilaria no contato inevitável com a alteridade. Dizer que a
liberdade é fazer qualquer coisa indiscriminadamente nos levaria,
fatalmente, ao contrassenso de termos de admitir uma diminuição da
liberdade à medida que ela se soma à liberdade alheia. Ou seja, a
prática individual irrestrita da liberdade gera opressão.
A
liberdade que deve compor um ideal é a que se coaduna com a
partilha. Aqui temos uma liberdade madura e refletida. A partir do
momento que se envolve com o sentimento de amor, no bojo de um ideal,
passa a respeitar a liberdade difusa na coletividade. Os projetos
coletivos de futuro, quando desassistidos de liberdade e amor, não
podem ser considerados ideais. Essa compreensão é de suma
importância ante as relativizações apressadas sobre os valores
fundamentais que devem reger a convivência humana. Da forma como é
praticada hoje, a relativização de valores provém da posição
progressista dos primeiros antropólogos. Servia como um instrumento
de combate ao etnocentrismo, garantindo maior objetividade na análise
científica. A razão de ser do relativismo era assegurar a
preservação da identidade cultural dos povos não-europeus, e
controlar os impulsos para produção de uma etnografia enviesada,
contaminada por discretos preconceitos adventícios. Porém, a
relativização é inadequada à investigação das bases abstratas
de processos idealistas. Quando um grupo abraça um ideal abrindo mão
da liberdade, esse abraço sufoca. Sem fôlego, projetos utópicos
perdem o fulgor, fundem-se na obscuridade que deviam combater.
A
parte mais delicada do amor a um ideal é justamente partilhá-lo.
Seu maior obstáculo é sobreviver ao conflito gerado pelo desacordo
entre os grupos. Como fortalecer um ideal de amor e liberdade
constrangido por atrozes resistências? Ironicamente, trata-se de um
processo traçado em paralelo a uma afinidade. O conflito segrega ao
mesmo tempo que se situa numa zona de interesse comum das partes,
sobre a qual elas elaboram julgamentos distintos de como, para que e
para quem agir. O conflito é uma expressão da irresistível
prevalência da liberdade. Com efeito, não há outra forma senão
por esse conceito para apontarmos o que é um ideal legítimo.
A
partir do momento que os ideais lançam mão de assassinatos e
quaisquer formas de violência, eles abrem mão da liberdade. Deixam
de ser, por definição, ideais. Os grupos sob a égide da falácia
da força bruta se descaracterizam como idealistas. Passam a ser
apenas militantes, termo que carrega consigo uma beligerância
etimológica intrínseca. Em grau mais agudo, tem-se o fanatismo,
germe da intolerância e do terrorismo. O erro de concepção repousa
no engessamento do vínculo fundamental entre ideal e a
transitoriedade. O ideal só é sustentado, em última instância,
pela crença na transformação e a superação do real. Desse modo,
passa a depender do aprofundamento da liberdade partilhada, da paz.
A
única forma de exortar pilares comuns e necessários a todos os
ideais humanos é estabilizar um consenso lógico acerca do que são
ideais legítimos. Todos os ideais precisam fazer jus à promoção
de amor, da liberdade e da partilha, sem prescindir do compromisso
com a mudança. A solidez lógica desse consenso afasta a
relativização politicamente correta que sustenta a etiqueta da
moral pós-moderna acerca de valores fundamentais, e ainda assim
permite a coexistência com o conflito. Um conflito pacífico que
engendra o aperfeiçoamento da convivência ao invés de aniquilá-la.
Por isso, tem-se base suficiente para identificar em quais ardis os
mais nobres ideais se vergam, prevalecendo acinesia do mais do mesmo.
Resolve-se, assim, não só o problema de saber o que é um ideal,
mas também o de como reconhecer impropriedades possíveis e
recusá-las.
Romero Maia
Ig: @SimpliciDados
romeromaia@gmail.com