Este artigo poderia ter vários títulos. Mais de duzentos. Exatamente 209. Precisei, claro, escolher apenas um. E o fiz pelo que me parecia mais contraditório, justamente porque é aí que está a graça. Um bom critério para falar do maior gênio do humor da minha contemporaneidade, o Chico Anysio.
O que sei se resume a uma pequena parte de sua carreira pela televisão, algumas pinturas do mar e músicas. O suficiente para ter certeza de um talento multifacetado e inesgotável. Um artista que só se arrependia de não ter feito "o dobro" do imenso legado que deixou. Um testemunho da seriedade com que fez humor.
Basicamente, a vida de um gênio pode ser resumida a duas coisas: criar e descobrir. Seja nas artes, seja na matemática, na espiritualidade ou nas ciências. Pode-se acrescentar a esses dois atos de virtude o vetor intensidade. Um gênio é intenso em tudo que faz. E, nesse caso, por um único motivo: porque tem a capacidade de amar tudo que se dispõe a fazer. Onde há amor não há limite para dedicação. É o lugar no qual esforço se transfigura em prazer perene. Quanto maior a capacidade de amar, mais ampla nossa disposição para a vida.
Chico amava inúmeras atividades. Por isso, era intenso em todas elas. Foi provavelmente um dos maiores polímatas artísticos da história recente do Brasil. Até em coisas nas quais não se exige tanto talento ou treino anterior, ele atuou com intensidade. A exemplo da torcida inveterada pelo Palmeiras. Paixão que o levou a tentar ser comentarista de futebol.
Era, da mesma forma, um amante insaciável da beleza feminina, embora tenha admitido ter “parado” quando sexagenário. Sempre reafirmou sua origem nordestina, mesmo tendo ido morar no Rio de Janeiro ainda criança, e fez dela fonte inesgotável para sua criatividade. Também amava o povo brasileiro, aquela parcela que compõe sua maioria, a que não nasceu em berço de ouro, o cidadão trabalhador, mas que de vez em sempre está procurando emprego. Devido a isso, muito de seu tempo de trabalho foi dedicado a abrir vagas de emprego nas empresas onde ele era empregado.
A famosa Escolinha do Professor Raimundo é um dos grandes exemplos dessa sua intenção. Lá, os benefícios de seu sucesso pessoal podiam chegar a outras famílias de humoristas. Mesmo podendo ser montada com cerca de 10 comediantes, o mestre Chico se empenhava para conseguir fazê-la com quase 50 comediantes.
Além de um homem de muitas competências, era também um profundo angustiado. A sensação de que muitas famílias dependiam dos espaços abertos por ele, oprimia-o bastante. Seu discernimento para avaliar contextos, capacidade bem desenvolvida em humoristas, possibilitava enxergar com clareza o ambiente comercial cada vez menos interessado no humor, e mais nos melodramas de novela. Ele também sabia das dificuldades políticas do Brasil e do caráter inerte-pedante de boa parte dos intelectuais e acadêmicos, incluindo a imprensa. Mesmo consciente que o Brasil precisava de homens instruídos, dotados de sensibilidade e inteligência social e, principalmente, de capacidade para agir, ele sempre recusou convites para disputar cargos políticos. Segundo o IBOP, sua vitória era garantida tanto em eleições proporcionais quanto nas majoritárias. Sua recusa se deu porque teria de se afastar do que amava, do trabalho artístico. Precisaria suspender por um tempo as transmissões de seus programas, desempregando dezenas de pessoas, e passar a conviver intensamente com lacaios políticos. Convívio que desgasta, até contamina a conduta ilibada em certos casos, e rouba o tempo de quem precisa de arte para respirar.
Chico Anysio escolheu se dedicar intensamente àquilo que já amava na juventude. Dia após dia, seu amor expandiu-se para outros ofícios, livros e personagens. Só quem vive com amor reconhece a dádiva do dia seguinte e tem gratidão de viver. Afinal, é viver o único pré-requisito para descobrir o sentimento de amor. E, certamente, porque conseguiu se estabelecer sobre esse sentimento, acertou em todas as suas iniciativas. Na entrevista que segue na integra abaixo deste artigo, gravada em 1993, Chico Anysio afirmou: “Eu acho que eu vou pintar até os 80 anos”. Claro que seriam justos 160 anos para alguém como você, Chico. De toda forma, acertou mais uma vez. Descanse em paz.