“Se
queres ser universal,
começa por pintar a tua aldeia.”
Tolstói
Assistir
a “O Som ao Redor” me destituiu de um dos preconceitos mais enraizados que eu
tinha sobre minha identidade citadina: sou provinciano? A cada dilema
vivido pelos personagens da intrincada trama que se passa em apenas uma rua do
bairro de Setúbal, em Recife, as fronteiras entre o que é universal e o que é particular
(e feio) são borradas e, aos poucos, vai revelando essa dicotomia como um falso
truísmo.
A coisa é mais complexa do que parece. A zona raiana entre o local e o global é uma faixa imensa, e não uma linha tênue. O elemento generalizadamente humano se sobrepõe à marcada especificidade do espaço cultural, fazendo deste apenas uma solução possível, entre tantas outras, para a vazão de expectativas e sentimentos compartilhados por todos os povos e gerações. Delicado é como cada traço cultural é constituído e confere identidade a determinado território de interação. Porém, e aprendi isso com o filme, mesmo as peculiaridades são lastreadas numa gramática ou estrutura humana comum e talvez dificílima de ser explicada objetivamente.
O filme todo é uma sucessão de assombros. Não porque o Recife também tem (claro...) sua própria história de criaturas sobrenaturais, mas porque é surpreendente alguém lhe conseguir assustar simplesmente com o cotidiano. Saí do cinema estupefato com a sensação de como aqueles minutos sentado me forneceram tantas perguntas libertadoras. Penso que deve ser da própria mistura de artes de que é composta a linguagem cinematográfica que, quando levada a sério, é capaz de expandir a consciência do público. Uma espécie de espanto aristotélico.
Na tela, o Recife inconfundível da fotografia foi perdendo seus traços distintivos, e tomou seu lugar, como causa e efeito ao mesmo tempo, os dilemas subjetivos que ele comporta. Todas as grades, todas as extorsões, todas as esperanças e todos os amores foram flagrados (como recifense, às vezes custo a acreditar que se trata de um filme ficcional) na memória que habita uma rua. E é sempre ela, a memória, que assume o protagonismo do presente que, a todo instante, rende-se e passa às fileiras dessa memória.
Um engenho não deixa de existir ao serem desativadas a casa grande e a senzala, pois não é da alvenaria que depende o mundo senhorial, mas da vigência de valores que legitimam a exploração pela certeza da superioridade herdada. No filme, Dinho, um jovem desempregado que frequentemente realiza pequenos furtos, incorpora e reproduz valores aristocráticos que, entre outros despautérios, dão-no a certeza de ser intocável numa discussão com vários seguranças armados. O encontro com o absurdo é inevitável, a não ser que se pense pela ótica dos valores. A servidão são os valores da servidão.
O grande mérito narrativo de “O Som ao Redor”, cujo impacto se fará sentir pelo resto de minha vida, é desvelar o sutil por meio do grosseiro, numa ficção documental da qual pululam elementos não naturalistas. A vida numa cidade pequena que se quer grande... Aliás, a vida numa rua de uma cidade pequena que sempre quis ser a Nova Roma ou, na pior das hipóteses, uma Veneza, captada em sua estética do absurdo, deu ao Recife uma nova ordem de grandeza. Pra mim, Recife agora é a província do mundo inteiro.
. Romero Maia
A coisa é mais complexa do que parece. A zona raiana entre o local e o global é uma faixa imensa, e não uma linha tênue. O elemento generalizadamente humano se sobrepõe à marcada especificidade do espaço cultural, fazendo deste apenas uma solução possível, entre tantas outras, para a vazão de expectativas e sentimentos compartilhados por todos os povos e gerações. Delicado é como cada traço cultural é constituído e confere identidade a determinado território de interação. Porém, e aprendi isso com o filme, mesmo as peculiaridades são lastreadas numa gramática ou estrutura humana comum e talvez dificílima de ser explicada objetivamente.
O filme todo é uma sucessão de assombros. Não porque o Recife também tem (claro...) sua própria história de criaturas sobrenaturais, mas porque é surpreendente alguém lhe conseguir assustar simplesmente com o cotidiano. Saí do cinema estupefato com a sensação de como aqueles minutos sentado me forneceram tantas perguntas libertadoras. Penso que deve ser da própria mistura de artes de que é composta a linguagem cinematográfica que, quando levada a sério, é capaz de expandir a consciência do público. Uma espécie de espanto aristotélico.
Na tela, o Recife inconfundível da fotografia foi perdendo seus traços distintivos, e tomou seu lugar, como causa e efeito ao mesmo tempo, os dilemas subjetivos que ele comporta. Todas as grades, todas as extorsões, todas as esperanças e todos os amores foram flagrados (como recifense, às vezes custo a acreditar que se trata de um filme ficcional) na memória que habita uma rua. E é sempre ela, a memória, que assume o protagonismo do presente que, a todo instante, rende-se e passa às fileiras dessa memória.
Um engenho não deixa de existir ao serem desativadas a casa grande e a senzala, pois não é da alvenaria que depende o mundo senhorial, mas da vigência de valores que legitimam a exploração pela certeza da superioridade herdada. No filme, Dinho, um jovem desempregado que frequentemente realiza pequenos furtos, incorpora e reproduz valores aristocráticos que, entre outros despautérios, dão-no a certeza de ser intocável numa discussão com vários seguranças armados. O encontro com o absurdo é inevitável, a não ser que se pense pela ótica dos valores. A servidão são os valores da servidão.
O grande mérito narrativo de “O Som ao Redor”, cujo impacto se fará sentir pelo resto de minha vida, é desvelar o sutil por meio do grosseiro, numa ficção documental da qual pululam elementos não naturalistas. A vida numa cidade pequena que se quer grande... Aliás, a vida numa rua de uma cidade pequena que sempre quis ser a Nova Roma ou, na pior das hipóteses, uma Veneza, captada em sua estética do absurdo, deu ao Recife uma nova ordem de grandeza. Pra mim, Recife agora é a província do mundo inteiro.
. Romero Maia
romeromaia@gmail.com