"A gente tem sede de infinito
e de permanência"
Adélia Prado
Depois de vários curtas-metragens premiados, como “Ventilador”, “Eisenstein” e “Muro”, a Trincheira Filmes lançou, em sessão première do Festival Internacional de Cinema do Rio, o primeiro longa do grande diretor Leonardo Lacca, “Permanência” (veja o trailer). Um filme magnífico que veio para ser o desenvolvimento necessário de outro curta da Trincheira Filmes, chamado “Décimo Segundo”. O longa foi efusivamente aplaudido ao final da exibição, o que não me surpreendeu. A minha sensação de surpresa, na verdade, ficou distribuída durante todo o filme.
Engraçado sentir isso
porque eu tive o privilégio de assistir ao longa outras três vezes antes dessa
première, ainda em fase de montagem e edição. Já estava ciente, obviamente, que
se tratava de um trabalho que consegue, ao mesmo tempo, ser denso e sutil. É o
filme de Leonardo Lacca que tem maior quantidade de diálogos, mas que,
essencialmente, faz uma profunda investigação sobre a natureza do silêncio.
“Respeite o silêncio”, diz o pai do fotógrafo recifense, Ivo, o protagonista
interpretado pelo impecável, e também pernambucano, Irandhir Santos, quando os
dois se encontram rapidamente em
São Paulo.
O que eu não esperava
era ver a grande plateia que lotou o Cinepólis da Lagoa rindo dos elementos de
humor sutil que permeiam vários diálogos. Não me refiro a já “antológica” passagem
em que Ivo
conversa com Laís, de madrugada, andando por uma calçada de São Paulo. Eles
dizem algo mais ou menos assim:
- Sou de
Recife, mas nasci de uma gaia no Rio.
- Gaia? O que é
gaia?
- Você não
sabe o que é gaia?!
- Não...
- Aqui em São Paulo ninguém bota
gaia?
Essa cena é genial e
estupidamente engraçada no cinema. Porém, refiro-me ao humor sarcástico
percebido pela platéia na interação entre Ivo e Mauro. Mauro é o atual marido
de Rita, a mulher que hospeda o fotografo Ivo em sua nova casa em São Paulo para que ele
possa realizar a primeira exposição individual de suas fotografias. O dilema do
filme é que essa gentileza de Rita traz à tona emoções arrefecidas pela
distância e tempo. Eles são ex-namorados que mantiveram grande carinho apesar
do fim do relacionamento.
A tensão do que pode
acontecer entre os dois segue irascível durante todo o filme. E é dosada de
forma tão talentosa pelo diretor que não cansa, não exaure, mas angustia o
expectador. Descancara os limites do relacionamento romântico, desestabiliza a ideia
de harmonia do que se tem como vínculo entre liberdade e amor. Massacra o senso
comum com a dor causada por sentimentos que permanecem mesmo quando,
formalmente, não podem mais se concretizar em ações.
O filme trata de
fotógrafo e fotografia porque se funde com essa outra arte (“Existe diferença
entre fotografia e arte?” – pergunta Mauro a Ivo, numa conversa na sala de
estar) para tratar do que não é fugaz, daquilo que, mesmo com desvanecimento do
passar dos anos, continua presente. É um filme sobre como a memória assume um
novo papel conturbado na configuração afetiva do mundo contemporâneo. A
história consegue a proeza de destrinchar os mecanismos do que pode ser
duradouro em meio ao caos urbano, onde tudo muda frenética e caoticamente.
É à música a quem cabe reunir e organizar todas as sendas do drama contido pelos personagens. Ela confere a única explicação possível para o não dito. A trilha sonora assume o papel principal em várias ocasiões, e especial na belíssima cena por dentro do túnel do metrô de São Paulo. "Depois do silêncio, o que mais se aproxima de expressar o inexprimível é a música", diria Aldous Huxley se também tivesse visto o filme ontem.
Todos esses elementos juntos fazem da obra mais uma grande realização, junto com "Som ao redor" e outros, do novo e independente cinema pernambucano. É um filme sobre o sagrado dentro do profano, aquilo que permanece. Inesquecível.
Romero Maia
romeromaia@gmail.com
Ig: @SimpliciDados