Abaixo segue uma breve análise mostrando diferentes formas de avaliar um cenário
político. Esta foi escrita ontem pelo prof. dr. Dalson Figueiredo,
do dpt. de Ciência Política da UFPE, com quem temos uma intensa
relação de parceria em pesquisas e debates. Ele nos pediu para publicar neste blog por saber de nossa "militância" pelo pluralismo de ideias e em defesa da ciência. Esperamos que nossos leitores apreciem a sensatez, porque essa é a marca de seu argumento.
Ele
escreve tentando elucidar como a ciência pode contribuir para
explicar a atual fase da crise política brasileira. O texto mostra
que o cientista enxerga a realidade de maneira diferente dos
advogados, e mais ainda dos editores dos jornais. Uma leitura
indispensável para quem não busca certezas absolutas, e tem algum
interesse em pensar com método.
Começa
com a descrição dos fatos em diferentes pontos de vista, e segue
com alguns dados que possam ajudar na construção de um cenário
comparável. Claro que o professor não realiza todo caminho do
método científico nesta pequena coluna. Ele prefere o bom humor da comparação com o seriado da Netflix para sugerir e estimular que o
leitor crie interesse e procure estudar sua disciplina.
Boa
leitura.
*~*~*
Em
reportagem divulgada essa semana, o jornal alemão Die Zeit diz que a
crise política brasileira é mais interessante do que a série
americana House of Cards que descreve as trapaças do maquiavélico
Frank Underwood rumo à casa branca. De fato, o roteiro nacional tem
algumas vantagens. Primeiro, conta com uma oposição claramente
insatisfeita com o resultado da última eleição presidencial.
Segundo, tem um presidente parlamentar, Eduardo Cunha (PMDB – RJ),
denunciado por corrupção e supostamente envolvido em transações
duvidosas. Terceiro, apresenta um núcleo conservador que tem como
principal protagonista Bolsonaro (PP), ex-militar e deputado federal
mais bem votado do Rio de Janeiro (6%). Para completar, um
ex-presidente que foi conduzido coercitivamente pela Polícia
Federal. Nos últimos dias, o Ministério Público de São Paulo
pediu a prisão preventiva de Lula, a juíza encarregada remeteu o
processo à Justiça Federal e a presidenta em exercício nomeou o
então denunciado como Ministro da Casa Civil, com direito a ligação
pessoal, interceptação telefônica e vazamento na internet por
ordem judicial de Sergio Moro.
Como
bem lembrou o professor Marcus Melo (UFPE), a politização da
corrupção não é uma questão ideológica (esquerda x direita),
mas sim um movimento contra o candidato mandatário, ou seja, o
incumbente. O que Underwood diria sobre a nomeação de Lula? Depende
de que lado do governo você está: situação ou oposição. Os
governistas diriam: a livre nomeação de ministros de estado é uma
competência privativa do presidente da república e encontra-se
cravada no artigo 84 (inciso I) da Constituição Federal de 1988.
Dessa forma, satisfeitos os pressupostos de idade e pleno exercício
de direitos políticos, não há impedimentos jurídicos na indicação
em tela. Mas nem tudo que é legal é moral. Veja as manifestações
nas ruas, diriam os opositores. Não existe legitimidade na escolha
da presidenta Dilma. A nomeação representa uma manobra política
com o objetivo de blindar o ex-presidente.
O
que diferencia a Ciência de outras formas de conhecer a realidade é
método de análise de dados. Diferente do advogado que se torna
defensor de uma ou outra posição, o cientista orienta suas
conclusões a partir da melhor evidência disponível. As estimativas
da Polícia Militar em diferentes estados sugerem um total de 3,3
milhões de pessoas em mais de 250 cidades. Isso quer dizer que cerca
de 1,65% da população em cerca de 5% das cidades resolveu se
manifestar sobre o tema. Sem dúvida, é muita gente. No entanto, o
Brasil tem mais de 200 milhões de habitantes distribuídos em 5.570
municípios. Ou seja, 98% dos brasileiros distribuídos em 95% dos
municípios ou não têm opinião sobre o assunto ou preferiram fazer
outras coisas no dia 13/3/2016. É o que o professor Leandro Karnal
(UNICAMP) chamou de maioria silenciosa. De forma mais preocupante,
não é possível saber em que medida a amostra presente nos
protestos é representativa da população brasileira. Dessa forma, é
impossível generalizar as opiniões e atitudes dos manifestantes do
último domingo para descrever o sentimento político predominante no
país.
No
que diz respeito ao foro privilegiado, a lei determina que o
julgamento de ministros de estado é competência do Supremo Tribunal
Federal (STF) (ver art. 102/CF 1988). Tecnicamente, isso faz com que
o processo tramite mais rapidamente do que na primeira instância,
argumentariam os governistas. Por outro lado, abre mais espaço para
decisões politicamente orientadas já que a nomeação dos ministros
do STF também é competência do chefe do Executivo. Dos 11 atuais
magistrados, Lula nomeou três e Dilma indicou cinco, diriam os
membros da oposição.
Estrategicamente,
para os governistas, a nomeação do ex-presidente para ocupar a vaga
de Jacques Wagner pode ser compreendida como uma resposta à eventual
parcialidade do poder Judiciário. Por outro lado, a oposição
defenderia que as ações de Moro e de outros membros das cortes são
consistentes com o princípio da imparcialidade já que as garantias
constitucionais do artigo 95 (vitaliciedade, inamovibilidade e
irredutibilidade de subsídios) permitiram a busca da verdade com
ausência de viés. Novamente, é importante diferenciar as linhas
de ação do advogado e do cientista. Acadêmicos de direito tendem a
ressaltar o princípio do juiz natural como pressuposto para o
funcionamento imparcial do Poder Judiciário na apreciação dos
casos postos em juízo. Há tempos que cientistas políticos
demonstraram empiricamente que existe variação estatisticamente
significativa da ideologia dos magistrados.
A
Constituição brasileira de 1824, em seu artigo 99, afirmava que o
imperador era sagrado, inviolável e que não estava sujeito a
responsabilidade alguma. Independente da sua localização no
espectro ideológico, a principal conclusão que emerge do cenário
político recente é o amadurecimento institucional. Com ou sem viés,
as nossas instituições estão funcionando: deputados condenados,
senadores presos, ex-presidente indiciado e uma presidenta grampeada.
Enquanto as intrigas da série alimentadas pelas vigarices de Frank
Underwood servem de entretenimento para o telespectador, os
desdobramentos da crise política acabam solapando a confiança
popular na democracia como forma de governo. No entanto, ninguém é
tão ingênuo ao ponto de acreditar que tudo isso é novidade. A
diferença é que agora temos streaming.
A quarta temporada de House of Cards já terminou, o próximo
episódio da nossa crise política está prestes a começar.