“O
indivíduo que não se interessa pelos demais é
o
que tem as maiores dificuldades na vida, e causa
maior
dano aos outros. É desse tipo de indivíduo
que
nascem todas as falhas humanas.”
Está
cada vez mais injustificável apoiar os pais do pato amarelo gigante,
os barões da indústria nacional. Último país a abolir a
escravidão nas Américas, o Brasil é agora aquele que revela uma
elite sem vergonha de flertar com uma volta à mesma média de horas
diárias das fábricas europeias no final do século XVIII. Ventilar
uma jornada de 80 horas de trabalho por semana, mesmo
que
já se tenha percebido o equívoco, é uma falta de sensibilidade
extrema com o curso da História. Na prática, implicaria dormir
todos os dias úteis no trabalho. Só compensaria voltar para casa
uma única vez, no fim da tarde do sábado, já que o brasileiro
perde mais de uma hora por dia, em média, no trânsito das capitais.
Para
quem não acreditou ou não entendeu direito o que se disse, de forma
tão falha quanto espontânea, o sr. Robson Braga de Andrade,
presidente da CNI, sobre "80 horas de trabalho semanais",
seguem abaixo interpretações bastante diretas e conclusões de
dados que tentam mostrar o que pode estar por trás desse “lapso”.
Mais
impressionante que a sugestão das "medidas duras", foi tê-la feito num evento com ampla cobertura
da imprensa e sem refletir sobre a desmedida do que estava falando.
Da mesma forma surpreendente foi que nenhum de seus pares, incluindo
o presidente golpista, constrangeu-se com a linha de raciocínio. Ao
que parece, esses senhores abastados chegaram aos cabelos brancos sem
qualquer desenvolvimento da capacidade de empatia. Do contrário, ao
pronunciar “80 horas semanais”, qualquer pessoa razoável
interromperia prontamente o fluxo de ideias, refletiria e
ponderaria. Qualquer retratação posterior vinda da assessoria
de imprensa, querendo fazer crer que houve um ledo engano de números,
tem pouca credibilidade para reparar o dano à sua imagem. Um homem,
para ser grande, diria o historiador Thomas Carlyle, demonstra a sua
grandeza com a maneira pela qual trata os que estão abaixo dele.
Mas
a partir de quê exatamente o sr. Robson cogitou aumentar a jornada
de trabalho do chão de fábrica? Ele fundamentou sua intenção de
mudança da lei brasileira citando a França, onde a lei atual
permite no máximo 35 horas/semana (e não 36 horas, como foi
dito). Ou seja, não tem sentido sua comparação. Acontece que
ele entendeu como louvável a tentativa do governo francês de
aumentar a jornada sem passar pelo Congresso. Ainda assim, soa
incoerente. Todos devem lembrar bem que os industriais, os do pato,
usaram justamente esse argumento para criticar a presidenta afastada
sobre o uso de créditos suplementares. Soa também antidemocrático,
para dizer o mínimo, defender que o Executivo não respeite um
trâmite legislativo apenas quando este não lhe é conveniente. A
situação fica ainda pior para sua argumentação omite um detalhe,
que os créditos assinados por Dilma gozavam de autorização prévia
do Congresso. Ademais, a proposta do governo francês foi, na
verdade, de 20 horas a menos que aquilo que o sr. Robson defendeu em
público. E para terminar, o Executivo francês já desistiu da
mudança na lei.
Não
bastou a fala irrefletida, o presidente ainda estava complemente
equivocado. Um brasileiro formalizado pode chegar a trabalhar 25% a
mais que qualquer francês. Nós estamos expostos a um regime de 44
horas/semanais. Foi a ameaça direta de greve geral e a desobediência
civil extrema nas ruas da França que fez François Hollande recuar.
Há rumores, relatados pelo jornal El País, que até policiais se
pronunciaram contra a reforma trabalhista, pois obviamente afetaria
desastrosamente a vida de amigos e parentes civis. Nada disso foi
pontuado pelo representante dos industriais destas bandas do Sul. O
que ele falou, trocando em miúdos, demonstra um um desejo
inconsciente, inconsistente e falho por uma jornada que
se inicia às 8h e vai até 23h30, de segunda a sexta. Isso
se o sr. Robson achar razoável ter intervalo de 60 minutos para o
almoço. E aos sábados, das 8h ao
meio dia, reiniciando depois do almoço às 13h e, finalmente,
entrando no trânsito para casa por volta das 16h30.
O
discurso do sr. Robson é estratégico embora possa parecer
pitoresco. Deu-nos a chance de conhecer o grau de indiferença da
classe patronal. Mas qual o limite dessas pessoas na relação de
produção que estabelecem com os operários? O inferno é o limite.
Via de regra, quando falam em “flexibilizar”, estão falando em
diminuir direitos do trabalhador, seja ele público ou privado.
“Flexibilização” é um eufemismo viciado. Os trabalhadores
sempre correm mais riscos. Geralmente não têm poupança suficiente
e não possuem ativos. Se focarmos a situação historicamente, o
cenário é ainda é pior. A classe dos não-proprietários foi a
última a gozar de instituições voltadas para garantir
exclusivamente seus direitos. As regras da economia evoluíram de um
tempo em que não era normal
receber pagamentos constantes pelo
trabalho. O proletário é o descendente econômico do escravo.
O salário é um direito conquistado por movimentos de contestação
das relações cativas ou servis impostas pelos proprietários de
terras. Todo direito trabalhista é resultado de um embate e, por
consequência, toda reforma trabalhista sugerida por patrões tende a
ser uma manobra para redução de direitos. Expressão da essência
conflituosa dessa relação. Do ponto de vista racional de um líder
empresarial, não há como fugir do dilema entre concorrência
internacional e produtividade média. A expressão racional desse
dilema é a tendência à redução do custo do trabalho embutido no
processo produtivo. Resta para todos os assalariados desenvolverem uma ação global com foco na isonomia entre direitos
conquistados nas diversas categoriais laborais.
Quando
se põe no discurso o aumento de jornada de trabalho como inevitável,
não é só uma demonstração de atavismo, mas também de
desinformação ou cinismo.
Se,
por um lado, ocupamos já há alguns anos uma colocação mediana no
ranking internacional de competitividade do Fórum Econômico
Mundial, que leva em conta, entre outras variáveis, a produtividade
média para cada dólar pago em salários, por outro não podemos
perder de vista a situação salarial comparada nas trocas
internacionais. Vale a pena ilustrar um pouco mais o argumento da
produtividade para observarmos como ele pode estar servindo apenas de
subterfúgio. Informações são omitidas
quando
querem fazer parecer que medidas desumanas (às vezes chamadas de
"duras" ou "impopulares") são inevitáveis.
Uma
reforma trabalhista para compensar a baixa produtividade aumentando o
número de horas não resolve o problema do desnível com a
competição internacional. Ainda na década de 1970, o economista A.
Emmanuel observou que a
despeito da incorporação das diferenças de produtividade, existe
uma grande discrepância
salarial
entre países desenvolvidos e em desenvolvimento: 1 para 20.
Esses
números podem ter mudado hoje, mas o que nos importa aqui é o
mecanismo. A renda sai dos países pobres e se concentra nos países
ricos a partir desse desnível
nos
termos de troca. Para se ter uma ideia, em
2009, nos países desenvolvidos a participação dos salários na
renda nacional era
de
aproximadamente
70%,
enquanto no Brasil girava
em
torno ainda de 40%, conforme
o IPEA. Isso é um
resumo
do
que na Economia se chama de “Teoria das trocas desiguais”. Não
dá para propor uma comparação internacional
para
diferenças de produtividade negligenciando essa constatação.
Também não é uma questão que se resolve apenas mudando a matriz
de exportação, como vamos explicar abaixo ao analisarmos a década
de 1960. De toda forma, é
muito
provável
que
até o sr. Robson saiba disso. Acreditamos que ele
se
lançou na defesa de uma jornada de trabalho elevada no intuito de
chocar e abrir espaço para uma barganha. Foi um blefe.
O
que realmente deve estar
em
jogo, à vera,
é
conseguir “flexibilizar”, tornar
individuais e personalizáveis todos os contratos de trabalho no
Brasil, encerrando a participação de acordos coletivos e
sindicatos. Isso tende a reduzir a quase zero o risco de greves, e
joga os assalariados uns contra os outros. Cada pessoa passa a ser
incentivada apenas a buscar otimizar seu próprio contrato,
movimentando-se pelo seu interesse de curto prazo. A CNI, por seu
turno, continuará tomando conta dos interesses da indústria em seu
conjunto. Faça o que eu digo, não faça o que eu faço.
A
pressão pela “flexibilização” começa a atuar no país um ano
depois
da transição para a ditadura de direita, em 1965, com a lei n.
4.923
que permitia uma redução geral e transitória dos salários. Aquele golpe um
ano antes, contra a esquerda que havia vencido democraticamente as
eleições, constituiu um período típico de redução da fatia da
riqueza que seguia para as mãos dos assalariados. Um ano depois, em
1966,
entrou em vigor a Lei n. 5.107
que concedeu aos empregadores ampla liberdade para despedir os empregados sujeitos ao regime do FGTS.
Ainda durante a ditadura, mas na década seguinte, veio a Lei
n. 6.119/74,
permitindo o desenvolvimento de empresas de trabalho temporário,
buscando atender a necessidade de substituir trabalhadores com a
qualificação necessária para aquela função. Essas mudanças
legislativas refletiam concordância da classe política com o
interesse organizado do empresariado. Um indicativo útil das
consequências dessas alterações pode ser observado por meio da
variação no montante da receita da indústria que seguia para os
trabalhadores na forma de salários. Abaixo explicamos.
Para
se ter uma ideia, no final de 1970, o Brasil apresentava taxas
“milagrosas” de crescimento do PIB (mais de 10% ao ano), mas o
valor real dos salários totais pagos pela indústria equivalia a
menos de 1% (a preços de 1967, segundo IGPC-Mtb) da parte do
faturamento que seguia para as mãos dos trabalhadores no
início de 1959. Foi por meio dessa extrema redução da
qualidade de vida do assalariado que, já em meados da década de
1970, a indústria brasileira pela primeira vez na história começou
a exportar mais bens industriais que matérias-primas. Sendo assim, a
deterioração dos termos de troca não é explicada apenas pelo
perfil dos produtos de exportação, mas pelo nível de bem-estar que
cada país pretende gerar para sua classe de operários. No nosso
caso, o interesse do empresariado e da classe política era tão
somente iniciar automação de processos para tornar seus negócios
mais competitivos, a despeito da qualidade de vida dos assalariados.
O bolo aumentou mas o fato é que não quiseram repartir. Um outro
bom indicador para isso é a variação do salário mínimo na época:
Esse
indicador de salário geral da economia formal da época, juntamente com a evolução do PIB, atesta que a captura da riqueza nacional
pelos donos das empresas não ficou restrita aos que atuavam no setor
secundário da economia. A aliança com a classe política propiciou
um achatamento geral da renda do trabalho. O prof. dr. de Economia da
UFRJ, João Sicsú explica: “Desde a sua criação até o golpe de 1964,
três presidentes defenderam o valor real do salário mínimo:
Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart. Neste período,
Eurico Gaspar Dutra, que governou o Brasil de 1946 a 1951, foi o
grande adversário do salário mínimo, deixando o seu valor ser
corroído pela inflação. No governo de Gaspar Dutra, não foi
concedido qualquer reajuste ao salário mínimo, que perdeu 40% do
seu valor real. O salário mínimo alcançou um de seus valores reais
mais altos exatamente um mês antes do golpe de março de 1964. Seu
valor em fevereiro daquele ano, corrigido monetariamente para os dias
de hoje (2014) era um pouco superior a mil reais. Desde o início da
ditadura até o seu fim, a tendência foi de perda do poder de compra
do salário.”
O
que sabemos hoje, graças aos registros históricos públicos,
leva-nos a entender a tendência de “flexibilização” como uma
falácia. Seus defensores são conscientes disso, porque todos os
dados que usamos aqui são de acesso irrestrito. Nosso trabalho foi
sistematizá-los e efetuar os cálculos de correção, levando em
conta inclusive as complicações advindas das mudanças de padrão
da moeda no Brasil. Prejudicar a vida financeira do assalariado é o
custo mais comum de se impor ao país para justificar políticas
elitistas de retomada do crescimento econômico. O último reduto de
dignidade talvez seja o setor público, onde os gestores dependem,
direta ou indiretamente, de eleições democráticas e por isso podem
assumir (ou não) compromissos com os trabalhadores. Reduto este que
agora está sitiado projeto de lei 257/2016 que, pra variar, retira direitos e reduz
pagamentos. O movimento é sempre o mesmo, e a história se repete
como farsa. Todavia, ela também mostra que essa não é a única
saída para gerar condições do crescimento do PIB e solucionar a
crise fiscal. Parece a única saída, isso sim, quando repetida ad
nauseam
pelo oligopólio dos meios de comunicação através do qual se
informam quase a totalidade dos trabalhadores. Observando o debate
geral na TV, parece que não existem dados históricos capazes de
desmentir esse discurso único e comodista; que
não existe sonegação de R$ 286 bilhões capaz de quitar todo o
déficit de R$ 170 bilhões projetado pelo governo Temer para 2016;
que não há um movimento de auditoria cidadã pedindo espaço para
tentar reduzir legalmente os R$ 962 bilhões que seguem para
amortizações e juros da dívida federal;
e que não há, claro não, viabilidade inverter o atual sistema tributário em que as classes baixa e média assalariadas
são as que pagam relativamente mais impostos. Viável seria debater
como reduzir direitos (“cortar despesas”), e discutir com um
presidente interino a solução para o problema de fazer assalariados
aceitarem o empobrecimento e salvarem a “competitividade” de seus
patrões.
Romero Maia
Ig: @SimpliciDados