“Sem Coração”, um filme belíssimo


 


Os espelhos são usados para ver o rosto.
A arte, para ver a alma.
George Bernard Shaw




A subjetividade é como um ser imenso nadando, à parte, pelas águas turvas dos afetos. Na adolescência, nadamos em níveis ainda mais profundos. Alguns desses níveis são sombrios, e há o risco de sermos feridos por outros seres desconhecidos. É perigoso estar no mar à noite sem experiência, diz a sabedoria da pesca. Todos nós somos marcados por essa fase da vida. Alguns ficam com traumas na memória. Outros, cicatrizes no coração.

Para alguns adolescentes, “se a alma não é pequena”, como dizia o “Mar Português” de Pessoa, vêm dificuldades extras nesse processo de autoconhecimento. Ora se sentem como peixes fora d’água, ora têm dificuldade para suportarem seu próprio peso, e o das hostilidades do mundo.

Esse foi meu caso e acho que também é o âmago da belíssima trama contada por Nara Normande e Tião no longa “Sem Coração”. Os anos de 1990, ali no início do governo FHC, formam o pano de fundo, discreto, mas determinante, para entendermos a jornada de Duda, a menina negra apelidada de “Sem Coração” pelos demais jovens da trama; e Tamara, a menina branca de classe média que tem uma casa grande onde todos vão brincar. As duas funcionam como polaridades cênicas, mas conectadas com rara sensibilidade dos diretores em mostrarem como elas, de universos tão díspares, possuem personalidades fortes e certo senso de justiça e maturidade incomum.

É talvez isso que atrai a atenção de Tamara ao ver a “menina sem nome” passar várias vezes, ocupada, sem tempo para brincar, demonstrando uma mistura de força, resignação e indiferença. “Sem Coração” gera curiosidade em Tamara. Curiosidade essa que desperta o desejo. Esse deslumbramento se transforma no mote para o filme desnudar a autodescoberta de ambas as personagens.

Sem Coração”, como o apelido já revela, vai descobrindo sua sexualidade no lugar de objeto, permitindo-se ser usada pelos demais adolescentes nos seus caminhos de descobertas enquanto sujeitos. O processo de Tamara já é diferente, como sujeita de seu corpo, e a partir de estímulos presentes no ambiente. Um deles é a própria Duda, nome que ela descobre ao buscar estabelecer uma relação amistosa, reconhecendo-a enquanto subjetividade ou, por assim dizer, como alguém com coração.

Ao lado dessa trama principal, há fortes dramas paralelos que adicionam camadas e mais camadas de reflexão. E ainda de mistério. Todos os assassinatos do filme são de autoria desconhecida, inclusive o de PC Farias. Bem anos 90. Assim como há um tempero de humor que cativa e deixa tudo leve. Raro ver um filme sobre adolescência tão honesto e com amplo alcance de temáticas abordadas, sem apelar para platitudes de discursos militantes e estereótipos da juventude.

O ser adolescente em meados dos anos 90 encontra abrigo até nos detalhes do enredo. Grandes casas de praia, mas de acabamento simples, que me fizeram lembrar da crítica do economista, dr. Robert Frank (Cornell University), à escalada de ostentação gerada pela publicização do luxo nesta era das redes sociais. Se foi um tempo em que a única tela era a da TV e em momentos específicos do dia. E já tinha um impacto enorme na formação das pessoas. Mas havia mais contato com a natureza, e conversas presenciais tomavam a maior parte do tempo. Cada um com suas histórias e lugares de distinção, mas todos partilhando o que algumas vezes era a única coisa em comum, ser adolescente e, por isso, saber que no futuro muita coisa deve mudar. Ou, para os pobres, desejar uma mudança que parece difícil de acontecer.

Duda, silenciosa e profunda; Tamara, reflexiva e expansiva, encontram-se final e afetivamente num seaside rendez-vous. Todos os adultos devem lembrar bem, o amor de verão. Ah, o amor! Amor que nos faz sentir o toque da eternidade, mas que as dinâmicas sociológicas se encarregam de pôr a termo. Fica, porém, e sempre fica, o aprendizado, a luz que aquelas memórias lançam sobre nossa compreensão do que somos, do que queremos, e do que sentimos.

Nascidas para serem gauches na vida, Duda e Tamara provavelmente nunca deixarão de se sentirem um pouco como peixes fora d’água. Sensíveis à luz, porém, podem fazer de suas vidas um espetáculo coletivo. Como os peixes fora d’água que saltam para e sob à luz da lua, causando o deslumbramento de todos em cena e no cinema. Esse é o valor do verdadeiro encontro de almas bem intencionadas. Não há mais objeto. Nem sequer indivíduos. O encontro real é algo de uma natureza diferente das partes que o compõe. Os dedos de Tamara, que tocavam apenas a superfície da água, agora encontram a mão calejada de Duda que caçava e se feria nas profundezas. E tudo vira uma coisa só, a adolescência.

 

Romero Maia

autor do livro “Juventude Brasileira: um guia de estudos”.  Esse artigo foi escrito ao som de "In only seven days”, do Queen.

Ig.: @SimpliciDados