De onde vem o tiro: o que o Brasil pode aprender com 58 anos de atentados nos EUA


 
Artigo originalmente publicado em https://periodicos.fgv.br/cgpc/announcement/view/305


“O fruto de cada palavra retorna
a quem a pronunciou.”
Abu Shakur



Lobby armamentista[1], lideranças políticas disseminando hostilidades, difusão de mensagens de intolerância em bolhas das redes sociais e, a cereja do bolo, jovens expostos a tudo isso[2]. Com esses elementos presentes num território, alguns dos tiros terminam saindo pela culatra. Essa conjuntura encontrou seu efeito mais relevante na ação de um jovem que atirou no ex-presidente dos EUA, Donald Trump, ambos filiados ao partido Republicano que, por sua vez, é intimamente ligado ao lobby da indústria de armamentista[3], incentivando enfaticamente que quaisquer indivíduos, e não apenas os a serviço do Estado, devem portar armas de fogo.


É quase um axioma das ciências sociais que incentivos são os combustíveis da ação dos indivíduos. Um sujeito muito tempo exposto, especialmente na juventude, à mensagem popular de que não deve “levar desaforo para casa”, tende a reagir mais com violência em  situações de conflito. Já outro predominantemente exposto a mensagens de negociação e concórdia, menos. Mensagens têm poder sobre comportamentos. Toda repetição de mensagens por meio de estruturas de difusão de amplo alcance visando impacto cognitivo-comportamental é propaganda[4]. E a propaganda pode ser a alma ou a arma do negócio da circulação de mensagens. Tudo vai depender dos planos do emissor.


Quando democracias reiniciam seus períodos de campanhas eleitorais, cada grupo político tem um modus operandi para atuar na disseminação de mensagens. As agremiações montam seu chamado “plano de marketing”, que contém o plano de governo. Na prática, hoje, o plano de governo é um tópico dentro do planejamento de propaganda dos partidos, não o contrário. E serão as decisões desse planejamento que definirão as palavras-chaves para captar a atenção e o voto dos eleitores. Como o confronto pelo poder é inevitável, os anos eleitorais tendem a ser mais tensos. Essa afirmação encontra respaldo nos dados que analisaremos mais adiante[5].


Isso acontece por causa da elevação do tom nos debates e do repertório de acusações que passam a compor a retórica da propaganda. Para mensagens de propaganda terem mais influência sobre comportamentos, elas precisam cumprir apenas 2 requisitos: avaliação de credibilidade subjetiva (credulidade), e exposição frequente do receptor[6]. De forma simples, se recebemos diversas mensagens, de pessoas que confiamos, de uma forma que nos parecem lógicas e coerentes (mas sem confronto com dados confirmatórios da realidade), as quais dizem que algum parente nosso sofreu um acidente e está internado em determinado hospital, isso certamente vai desencadear a ação de entrarmos em contato com esse hospital ou irmos até lá. Talvez, mesmo antes disso, muito afetados pela sensação de emergência, nós repassaremos essa mensagem para outros parentes, que repassarão para outros etc. E é aqui que começa todo o enorme problema.


O fato de todos os parentes acreditarem na mensagem não significa que ela é verdadeira. Mas até que haja uma checagem na experiência real possível sobre os efeitos da mensagem, ela permanece verdadeira em seus efeitos. É a chamada “bandwagon fallacy”, muito comum em pesquisas eleitorais. Quando divulgadas, moldam atitudes eleitorais em vez de somente retratá-las e decidem uma eleição [7]. De fato, qualquer mensagem tem potencial de ser usada como propaganda. E pesquisas eleitorais, se não forem bem regulamentadas, viram justamente isso. Portanto, num Estado que se quer democrático, deixar o fluxo de mensagens sem qualquer regulação não é uma opção. O debate legítimo que resta é como legislar uma regulação. Tal postura assume especial risco em ambiente eleitoral no qual atuam os autointitulados candidatos “outsiders”[8] que, para negarem as instituições, precisam necessariamente se afirmar através de propagandas conspiratórias que podem ir de “Protocolos dos Sábios de Sião”, na Alemanha, à mais recentemente “Qanon”, nos EUA.


De forma geral, essas propagandas conspiratórias têm caráter xenófobo e reacionário ligado à chamada extrema-direita. No caso americano, o trumpismo, que abarca pessoas fisgadas por esse tipo de propaganda, levou a uma mudança drástica no cenário de conflito político nos EUA, culminando com a inédita invasão do prédio do Capitólio, com um presidente derrotado incitando a população e, igualmente inédito, recusando-se a aceitar o resultado oficial das eleições. Como indicador desse efeito da propaganda trumpista sobre o comportamento dos americanos, observaremos uma série histórica de 58 anos de atentados a tiros em escolas americanas, na qual consta o número anual de atentados desde 1966, conforme o gráfico 1 abaixo:


Fonte: elaboração própria a partir dos dados do School Shooting Database


Fica evidente na série o estopim de uma crescente em 2016. Esse foi ano eleitoral com maior número de atentados da história americana. Nesse sentido, temos que observar sequências eventos-chaves de alcance nacional ou internacional que podem servir como pistas válidas para explicar a disparada da violência armada. Logo no ano seguinte à campanha, em 2017, foi registrado o maior número de atentados de toda série até então. Uma explosão de violência armada só discretamente contida pelo lockdown do primeiro ano de pandemia. Essa anomalia dos dados encontra impulso no público-alvo da propaganda de Trump, notoriamente marcado pelo racismo e xenofobia[9] e por ele mesmo ter dito que “poderia ficar no meio da Quinta Avenida e atirar em alguém e não perderia nenhum eleitor”[10].


Se considerarmos os períodos inteiros de um partido no poder desde o começo da série histórica até 2015 (pré-Trump), temos que os anos de governos republicanos são os que mais acumulam atentados, seguidos por anos de campanhas para presidência, e por último por anos nos quais o país é governado por um presidente do partido democrata. Mas a diferença não é nada comparada ao aumento de tiroteios depois do aparecimento de Trump como candidato oficial à Casa Branca. Os EUA passaram de 25 atentados em média por ano para a impressionante média de 172 atentados anuais, isto é, quase 600% de crescimento desse tipo de crime. Isso nos leva a estimar que, caso as mensagens da propaganda trumpista nunca tivessem acontecido nos EUA, mais de 700 atentados teriam sido evitados. O gráfico 2  ilustra essa discrepância entre os cenários:


Fonte: elaboração própria a partir dos dados do School Shooting Database


Fica evidente o grande risco de não ter instituições públicas que monopolizem o uso da violência. Isso implica perder completamente o controle sobre a segurança no território doméstico. O que significa tecnicamente, numa perspectiva hobbesiana, o fim do Estado. Se considerarmos um recorte do período que começa com a campanha eleitoral do primeiro candidato “outsider’’ da história americana, e que também viria a ser o primeiro ex-presidente condenado criminalmente, temos um crescimento exponencial jamais registrado, e que pode ser representado pelo seguinte modelo preditor: f(x)=38,47e^(0,29x); R² = 0,93.


Com esse modelo, temos que o fator de impacto do trumpismo sobre os atentados é de cerca de 30% a cada ano. O R² indica que o modelo exponencial adere bem ao fenômeno. Porém, caso Trump nunca tivesse ingressado na disputa presidencial, e se mantivesse a tendência linear anterior, o aumento no número de atendados tenderia a ser de apenas 1,2% ao ano. Temos aí o que chamamos de “Efeito Trump”.


Podemos considerar também outra causa interveniente para esse fenômeno. As redes sociais já vinham possibilitando um clima de recrudescimento do ódio político dada falta de regulamentação e a missão dos algoritmos de manterem o engajamento via gatilhos emocionais[11]. Mas um detalhe importante é que as redes sociais já tinham amplo alcance muitos anos antes da mudança na tendência dos dados. Se começarmos com o mIRC, em 1995, são mais de 20 anos de antecedência sem qualquer alteração significativa no padrão de atentados. As plataformas de redes de sociais atingiram seu ápice por volta na primeira década deste século, com o lançamento do Orkut e do Facebook em 2004. Aquele teve uma vida curta, mas esse último rapidamente se tornou hegemônico chegando, em 2008, a contar com 100 milhões de usuários, e logo depois consolidou-se como a principal rede social global ao atingir 1 bilhão de usuários ativos quatro anos antes do trumpismo. Paralelamente, figuravam o Twitter (hoje “X”), que difundia mensagens curtas desde 2006, e o Whatsapp que iniciou sua atuação em 2009. Mesmo com toda essa proliferação de redes, não se percebe qualquer variação irregular nas tendências de ataques nesses anos e nos adjacentes.


O que se percebe é que mensagens de ódio amplamente disseminadas com planos profissionais de propaganda[12], em territórios sem regulação, e reforçadas pela conduta hostil de uma liderança política, são incentivos suficientes para o descontrole e aumento do comportamento criminoso. Sobretudo em países nos quais é fácil o acesso a armas de fogo. Os jovens são um grupo etário especialmente sensível a discursos apelativos e repetitivos[13], mas mesmo entre os jovens há fortes clivagens políticas. Para se ter uma ideia, os jovens americanos que se entendem como progressistas estão em certo consenso sobre ter confiança nas posições de cientistas e especialistas. Entre ativistas ligados aos valores reacionários, essa confiança cai em mais da metade dos jovens[14].


Num cenário como esse, o princípio da precaução entra no horizonte como o mais recomendável para países que não possuem um marco regulatório claro, como por exemplo a NetzDG da Alemanha, para lidar com mensagens de ódio político que atuam pelas redes sociais. O ex-ministro da justiça do Brasil, hoje ministro do STF, Flávio Dino, disse acertadamente ano passado [15] que os atentados cometidos por jovens dentro das escolas brasileiras estavam relacionados à disseminação de discursos de ódio nas redes sociais. “Precisamos aprender alguma coisa com esses massacres com uso de arma de fogo. Aconteceu agora nos EUA novamente. Nas primeiras páginas dos jornais americanos está a foto do atirador do Maine”, disse ele[16].


O que aprendemos com os dados é que atiradores não são, isoladamente, a causa dos atentados. Eles também são efeitos dos fatores que listamos na primeira frase deste artigo. Efeitos de uma conjuntura social que incentiva que isso aconteça. O negacionismo sobre essas possíveis causas que saltam dos dados não ajuda a anular seus efeitos. Até que sejam democraticamente regulados todos os meios massivos de circulação mensagens para impedir a apologia ao ódio seguirá a tragédia. E pela típica ironia contida em toda tragédia, esses efeitos são justamente o local de onde vêm os tiros contra quem costuma negar a ciência dos dados.


Notas


  1. Joe Biden: "quando vamos enfrentar o 'lobby' das armas?" Disponível em: https://www.rfi.fr/pt/geral/20220525-joe-biden-quando-vamos-enfrentar-o-lobby-das-armas
  2. Guia da Juventude Brasileira. Disponível em: https://guiajuventudebrasileira.blogspot.com/
  3. NRA slashed spending on federal lobbying amid legal troubles. Disponível em: https://www.opensecrets.org/news/2024/05/nra-slashed-spending-on-federal-lobbying-amid-legal-troubles/
  4. Regional brain activation with advertising images. Disponível em: https://psycnet.apa.org/record/2011-18000-001
  5. K-12 School Shooting Database. Disponível em: https://k12ssdb.org/
  6. A exposição de crianças e adolescentes nas mídias sociais e o aumento de crimes no âmbito virtual. Disponível em: https://revistaft.com.br/a-exposicao-de-criancas-e-adolescentes-nas-midias-sociais-e-o-aumento-de-crimes-no-ambito-virtual/
  7. As pesquisas eleitorais erram ou influenciam você?. Disponível em: https://3999302648774.gumroad.com/l/puplk
  8. As eleições nos Estados Unidos e o futuro do trumpismo. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/gestao-politica-e-sociedade/as-eleicoes-nos-estados-unidos-e-o-futuro-do-trumpismo/
  9. It’s About Hate: Approval of Donald Trump, Racism, Xenophobia and Support for Political Violence. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/1532673X221131561
  10. Trump: I could ‘shoot somebody and I wouldn’t lose voters’. Disponível em: https://edition.cnn.com/2016/01/23/politics/donald-trump-shoot-somebody-support/index.html
  11. Livro explica como o engajamento do ódio é valioso para as redes sociais. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2023/04/5088700-livro-explica-como-o-engajamento-do-odio-e-valioso-para-as-redes-sociais.html
  12. É hora de se debruçar sobre a propaganda em rede de Bolsonaro. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/18/opinion/1539892615_110015.html
  13. Effects of alcohol advertising exposure on drinking among youth. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16389206/
  14. Eleição nos EUA testa a influência do jornal e se Facebook pode banir ódio. Disponível em: https://www.poder360.com.br/futuro-indicativo/eleicao-nos-eua-testa-a-influencia-do-jornal-e-se-facebook-pode-banir-odio/
  15. Flávio Dino discute segurança para impedir ataques em escolas. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/flavio-dino-discute-seguranca-para-impedir-ataques-em-escolas/
  16. Ministro da Justiça presta esclarecimentos sobre vários temas. Disponível em: https://www.youtube.com/live/eYtK-Ptc5-o?si=ss9WHZGfS17XSsBw&t=2401


Agradecimento

Agradeço enfaticamente ao inspirador prof. dr. Dalson Figueiredo pela indicação da base de dados k-12.


 

Sobre o autor:

Romero Maia é Gestor de Pesquisas do IBGE. Autor de 2 livros em Ciência Política, discute dados e pesquisas no ig. @SimpliciDados e no blog “O Despertador”.