O que fez a pediatra gaúcha? Liberdade ou discriminação?




Age de tal maneira que a máxima de tua vontade
possa valer igualmente em todo tempo.” - Kant

Uma regra básica sobre o exercício civil da liberdade é que tudo pode ser feito ou expressado, exceto o que a lei proíbe. Viver em “sociedade” é acordar limites saudáveis à liberdade individual. Inspirados em Rousseau, podemos dizer que obedecer a leis criadas de uma forma verdadeiramente democrática é uma autêntica experiência de liberdade. O direito, portanto, pode ser chamado de o espaço da liberdade.

Talvez um dos maiores pontos de confusão é saber quando alguém, intencionalmente ou não, aniquila o direito do outro. Já tratamos um pouco sobre isso num post mais abstrato chamado “O universal idealista”. Hoje queremos ser um pouco mais exemplificativos para tratarmos de discriminação. O que vamos fazer aqui é tecer situações que nos permitam elucidar lateralmente o dilema ético no qual se envolveu a pediatra gaúcha Maria Dolores Bressan. A abordagem lateral se justifica como forma de evitar a confronto com as fortes emoções envolvidas nesse caso, e também como forma de evitar a repetição de argumentos já tão propalados nas redes sociais nesta última semana.

A Constituição brasileira restringe a expansão da liberdade de um indivíduo quando ela implica ação adversa contra alguma característica cultural, biológica, econômica, profissional, política etc. Ação essa que, desprovida de motivação estritamente pontual e pessoal, é movida por um repúdio que se lança sobre coletividades e capaz de excluir grupos inteiros de oportunidades sociais. No Brasil, não há liberdade para discriminar. Nem para legislar alguma exceção a esse respeito, já que se trata de uma proibição constitucional. Consequentemente, todos os códigos de ética são infraconstitucionais e só permitem interpretações que não firam a lei maior.  Mas, na prática, o que é discriminar? Discriminar é o motivo que gera a aversão. Já que o Estado não tem como acessar o sentimento motivador, a discriminação será configurada por indícios que deixam rastro no comportamento discriminatório. Para entender, vamos ilustrativamente à prática. Seguem dois exemplos.

Primeiro, Beltrano é cabeleireiro, assalariado. Ele presta seus serviços regularmente das 8 às 17 horas, de segunda a sábado. Suponha que Beltrano foi assaltado há um mês quando caminhava à noite pelas ruas de outro bairro mais pobre e estigmatizado. De repente, entra em seu belo salão um homem que ele reconhece como sendo aquele que o assaltou. Mas diferente do fatídico primeiro encontro, o rapaz apenas se senta e espera sua vez. Beltrano tem certeza que se trata do ladrão. Nesse caso, ele não só tem o direito de negar o atendimento, como também o de requisitar a força policial para denunciar o meliante diante de seu testemunho e B.O. Por outro lado, imagine que Beltrano reconheceu apenas que o rapaz é oriundo do mesmo bairro onde fora assaltado. Se motivado por isso, Beltrano sentisse alguma aversão e negasse o atendimento, até mesmo baseando-se numa suposição que o salão estaria em perigo (estigma), ele cometeria o crime de discriminação. Pois, se os demais cabeleireiros passassem a negar atendimento como ele, todas as pessoas oriundas daquele bairro deixariam de ter acesso a essa oportunidade social, isto é, não poderiam mais acessar um cabeleireiro.

Vamos além. Esse exemplo do cabeleireiro é relativamente tranquilo de compreender. Afinal, alguém pode pensar, o segundo cliente não fez nada para "merecer" ser vítima de discriminação. Porém, esse não é o ponto fundamental para entender a manifestação da discriminação. Permita-nos ilustrar uma outra situação particularmente delicada. Imagine agora que uma mulher, advogada criminalística, recebe um cliente em seu escritório. O rapaz vem acompanhado de seus pais que, em prantos, solicitam seus serviços para defendê-lo de uma acusação de estupro.

Depois de 2 meses de reuniões com a família e de pesquisas por conta própria, a advogada fica bastante convencida de que o rapaz pode ter mesmo estuprado uma adolescente. Se por causa do tipo de crime em questão a advogada criminalística negar seus serviços, ela discriminaria o rapaz? Sim. E não apenas por ele ter presunção de inocência, mas porque ela estaria atuando de forma a excluir oportunidade de defesa a pessoas acusadas de estupro. Mas vamos dificultar ainda mais situação para a profissional… Pense agora que na última reunião o rapaz confessa o crime e está disposto a assumi-lo em juízo, requerendo que a advogada faça seu trabalho de forma a tentar reduzir legalmente sua pena. Então, ela poderia deixá-lo sem defesa? Não, porque a única explicação para isso seria, mais uma vez, discriminação do réu.

O que precisa ficar claro para todos, e isso é bastante duro às vezes de entender, é que quando atuamos na sociedade, numa função qualquer, a Constituição não nos dá o direito de sermos seletivos por razões que impliquem discriminação. Um professor Filosofia Escolástica não pode se negar a atender um radical islâmico somente por ele se identificar assim. Por mais grave que seja a nossa justificativa para querer negar um atendimento, se não for estritamente pontual e pessoal, ela se torna passível de excluir todo um grupo de pessoas que têm em comum a característica aversiva, mas que não estão relacionadas ao caso particular. Isso é o início da segregação, e por isso a Constituição condena qualquer forma de discriminação.

O que resta para a nossa advogada hipotética? Resta cumprir esse imperativo ético constitucional a contragosto, e sabemos que não é fácil. Infelizmente, ela vai precisar entender racionalmente que se não quer prestar serviços para alguém que cometeu crime de estupro, não está em condições de trabalhar como advogada de defesa na área criminal. Mas se a emoção falar mais forte que a razão, o que fazer? Mentir. Inventar uma justificativa que não seja indicativa de discriminação. Esse é o ponto objetivo e que a coloca na terrível situação de ter aceitar o caso ou cometer discriminação, mentindo ou não. Mas a situação poderia ser muito pior…

Tenha em mente agora que a advogada termina por descobrir que o réu estuprou também outra garota que era uma conhecida sua. Agora realmente nossa amiga está em maus lençóis. Ela precisa continuar com o serviço? Claro que não! Ufa! Porque, finalmente, a justificativa evidente não é discriminatória, é pontual e pessoal. Ela está estreitamente envolvida com aquele caso em particular por nutrir sentimento pela vítima e partilhar diretamente da dor dos que o acusam. Ela eticamente pode declinar do caso do jovem.


Agora, leitor, se você chegou até aqui depois dessa desgastante jornada de imaginar dilemas éticos tão dolorosos, está apto a refletir conosco sobre uma área da atividade humana em que as soluções para quaisquer dilemas éticos possuem consequências profundas. Na área de saúde, para transcender qualquer suspeita de discriminação, há dois motivos básicos para a negativa de atendimento ao paciente: 1] o profissional avaliar objetivamente que há grande probabilidade de seu acompanhamento piorar o quadro geral de saúde do paciente; 2] uma grave ameaça à própria integridade física do profissional. Pois bem, agora visualize uma médica pediatra que sente ódio de todas as pessoas filiadas a um partido político no Brasil. Apenas isso seria motivo legítimo e suficiente para suspender seu serviço de acompanhamento a uma criança cuja mãe é filiada a esse partido? A resposta para essa pergunta se perde no debate que convulsiona nas revistas e nas redes sociais, porque os argumentos prescindem de uma boa definição do que vem a ser discriminação. Foi o que nós oferecemos neste texto e, por isso, achamos que nem precisamos continuar a argumentar além do que fizemos até aqui. Acreditamos que o leitor já está de posse dos elementos necessários para ter sua resposta.


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Comentários

  1. Muito pertinente e elucidativo esse post em tempos onde, usam a ética (sem nem saber o que significa) pra justificar discursos de ódio e total falta de respeito a ideias divergentes do senso comum...dizer ser "anti-corrupção" virou um tipo de ética, onde é permitido xingar, desqualificar, julgar e esconder os espelhos de dentro de casa.

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