Estado são, preços sãos



Sobre a inflação. Uma lei geral da moeda poderia ser: a moeda quando abunda tende a virar papel higiênico. Às vezes nem isso. Como aconteceu na Alemanha após a I Bizarrice Generalizada (Guerra): em 1923, 1 bilhão de marcos tinha o valor de cerca de 1 (só um) marco antes da guerra. Um rolo de papel higiênico deveria custar até um pouco mais que 1 bilhão. Dinheiro demais numa economia parada perde seu valor de troca.

Essa é a explicação básica dos monetaristas. Bem, mas por que o dinheiro abunda? “A culpa é do governo!”, gritaria sectariamente algum discípulo de Friedman. E isso até parece bem razoável. Num sistema de mercado monetizado (nem sempre o mercado mediou suas trocas com dinheiro, mas isso é assunto para outro artigo em História Econômica), o governo toma para si o direito exclusivo de confeccionar a grana do povo, além da capacidade de fazê-la circular forçosamente. Tudo isso por inúmeras razões de ordem prática e política que não tenho tempo de listar aqui (tudo bem, duas: dificultar falsificações e padronizar mercados; três: ser de fato o leviatã).

Toda vez que alguém vê uma nota ou moedinha qualquer, ela só pode ter vindo de um lugar: da fábrica do governo, isto é, da Casa da Moeda. É justamente por essa origem óbvia que o militante da ortodoxia não vê alternativas senão a irresponsabilidade do governo para o aumento do meio circulante e, consequentemente, do nível geral de preços. Fim de papo. A solução seria: “Vamos privatizar (minimizar) o Estado que tudo se resolve, pois o mercado se autorregula...” mimimi.

Esperemos um pouco e pensemos mais além. Não “no além” da abstração retórica e reducionista, mas além disso; ou seja, na vida real, sob a ótica de uma economia política. Como é que se chega a esse ponto de excessiva expansão creditícia? É preciso, antes disso, inquirir: por que(m) os gestores governamentais afrouxam o controle sobre a quantidade de moeda? Eles nada mais fazem que ceder à pressão de grupos privados. “Privados?!”, alguém pode se espantar. Se espante, mas não se indigne. Se não estou sendo formal aqui, tampouco estou discutindo futebol. Vamos em frente. Políticos são meros representantes, lembra? E quem eles representam: grandes grupos organizados que votam neles (coisa rara porque exige um enorme esforço de mobilização e consenso, e um forte senso de disciplina entre inúmeros membros), ou grupos menores e milionários que pagam as campanhas deles. Esses últimos, portanto, são os que mandam no país: banqueiros, empresários bem-sucedidos e grandes especuladores (advertência: é comum observar todos esses atributos num único indivíduo ou família).

Nossa, que surpresa, hein? Administração “pública” é um engodo. Nem tanto, mas quase isso. Com vocês, o mundo real: os poucos grupos que concentram a maior parte da renda querem mais dinheiro (do restante da população bancarizada) para fazerem crescer seus rendimentos; para ficaram mais ricos ainda, enfim. Ao passo que também são consumidores, quando investidos desse papel, querem ser felizes pechinchando. Pronto, eis o sentido da vida e do passar dos dias. Só.

O ato de investir, nesse sentido, significa comprar para produzir mais. Essa compra, por sua vez, exige um certo sacrifício de reservas e promete um retorno incerto do capital. É o risco do capitalista. Do capitalista? Não, desculpe. Muitas vezes, do amigo “público” chamado BNDES. Você jogaria todo seu dinheiro numa compra simplesmente para ficar mais rico, sem nenhuma outra causa maior pela qual viver? Perguntando de outro modo para um leitor classe média ou pobre: arriscaria não ter dinheiro para o feijão daqui a um mês? Claro que não, né? Esses grupos lobbystas também não. Às vezes eles até têm em cash, mas preferem usar o dinheiro dos outros, de bancos preferencialmente públicos porque dão condições mais amigáveis (acordadas com diretores indicados politicamente) orientadas para a “geração de empregos”. E esse milionários apenas investem produtivamente porque a taxa de rentabilidade supera os juros e o cálculo de riscos da melhor opção no mercado financeiro. “Há boas expectativas para a economia”, como dizem. Quando termina, repetem a torto e a direito que acreditam no desenvolvimento do país. O deus Desenvolvimento.

Como sabemos, quem faz de emprestar dinheiro um estilo de vida é agiota. No mundo legal, é o sr. dr. banqueiro. Mas se o governo percebe o movimento inflacionário por causa do aquecimento da economia (ampliação exagerada do crédito pelos bancos, que multiplicaria o meio circulante ad infiitum se não fossem as reservas legais, isto é, se não fosse a interferência do Estado), e começa (somente começa) a diminuir o ritmo de expansão da moeda, o que acontece? Os financiadores de campanha se juntam para reclamar. Todos eles.

A dificuldade de crédito diminui a acumulação de capital. Ela passa a ocorrer em níveis menores que no “bom momento” imediatamente anterior. Está armada a confusão e a cilada. Toda vez que um governo tenta controlar o fluxo monetário tirando parte do montante de circulação, gastando menos ou fazendo menos dinheiro, o sistema capitalista gira em rota de recessão econômica. Não foi por outra razão que o recente relatório da OIT sobre o trabalho na Europa culpou a receita da “austeridade” pela crise no continente e aconselhou aumento dos gastos públicos.

Quando um governo atende aos anseios dos neoclássicos, deixando de ser “irresponsável”, ele inibe a atividade produtiva. Na prática, os agentes econômicos que fazem grandes vendas e grandes compras no atacado querem o adiantamento de suas duplicatas. Quando eu trabalhava num banco, era uma loucura acalmar os empresários no famigerado dia do desconto de duplicatas. É preciso ter um bom montante circulando para vender sempre a prazo e receber à vista do banco. Entretanto, há um completo descompasso entre a bitolação por crescimento e as demandas reais de uma economia sem planejamento central e baseada no trabalho assalariado. A inflação é uma depreciação do valor da moeda que pode ser originada, predominantemente, por pressões de agentes privados buscando maximizar o lucro de seus negócios. Coisa totalmente racional dentro da lógica inerente a mercados de livre empresa e regidos pelo direito à propriedade privada dos bens de capital, recursos naturais e conhecimento técnico. Impossível, assim, colocar a culpa apenas numa imagem pitoresca de gestores públicos com fixação em imprimir notas de cem para atender a empresas de engenharia que superfaturam obras públicas, ou para pagarem proventos extraordinários, de até 723 mil em um mês, a desembargadores dos TJs pelo Brasil. É uma questão um pouco mais sociológica que psicológica. Esses agentes privados geralmente possuem a maior parte de seus ganhos mensais atrelados a uma renda variável. Mas termina que o fenômeno inflacionário causa maiores danos à vida de quem sobrevive de renda fixa.

Estamos encurralados? Alivia saber que atualmente seria possível evitar a distorção do valor da moeda por meio de planejamento econômico arrojado e moderno, que venha a substituir a desorganização apelidada de “liberdade” pelos que defendem um Estado mínimo. Esse termo, “planejamento econômico”, virou tabu no passado porque foi posto em prática por grupos militarizados promotores da antiga burocracia patrimonialista, assentada na incompetência, corporativismo e favorecimento. Tudo muito distante da impessoalidade e do mérito que tendem a imperar hoje. Com a tecnologia disponível, parece possível alinhar um regime democrático e transparente a um planejamento econômico de alto grau de eficácia, deixando o Estado são e salvo da distorção causada justamente por aqueles que culpam o governo pela inflação: a iniciativa privada.




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