Mais sobre inteligência: como saber que você não sabe?


 Engenheiro bolsonarista que disse à PF que "covid não existe"


Em post anterior neste blog, do dia 14 de julho, nós mostramos como pode acontecer a repetição de uma farsa. Pessoas consideradas (com boas razões para isso, diga-se de passagem) referências de inteligência caem, recorrentemente, em autoengano. Acreditam que chegam a conclusões necessariamente boas em  áreas distintas daquelas nas quais são, de fato, experts. E depois ainda fazem pior: apegam-se de maneira ferrenha a essas conclusões. Como se existisse um movimento inconsciente de generalização apressada, tanto por parte delas mesmas quanto do senso comum, afirmando que gente ilustrada tem passe-livre para dar orientações sobre quaisquer temas. Criou fama, deitou na cama.

Só que não. No texto, expomos como o historiador e jornalista espanhol, José Ortega y Gasset, descreveu um fosso abissal de ignorância política nas mais notáveis mentes de sua época, a primeira metade do séc. 20, o que nos pareceu uma gravura ultrarrealista que ajuda a explicar o aumento da adesão à extrema direita no Brasil e mundo afora nos últimos anos.

Vamos acrescentar agora um trecho de outro livro que continua o desenvolvimento desse argumento mais ponderado sobre os limites do que entendemos por inteligência. Um conceito que começou a ser muito difundido nos EUA um pouco antes da 1ª guerra mundial com o teste de QI, do qual se esperava medir a inteligência bruta hereditária de crianças e jovens para prever sua chance de sucesso técnico, econômico e de liderança social; mas que esbarrou em observações posteriores sobre variações nos escores que afastaram a crença na supremacia do determinismo genético em prol de um maior impacto do ambiente social no chamado "efeito Flynn". 

Dadas as novas evidências, a inteligência deixou de ser singular e passou para o plural, "inteligências", a fim de abarcar a complexidade das capacidades das mais diversas inclinações pessoais. Hoje o debate de ponta vai além disso. O conceito-chave em estudo não é mais a inteligência, mas sabedoria. Sobre isso, segue abaixo trecho escrito pelo matemático, jornalista e especialista em neurociências e comportamento, David Robson, que exemplifica bem na História como é dificílimo para pessoas com alguma inteligência notável, sobretudo a analítica, não adotarem opiniões e comportamentos completamente delirantes, simplistas ou mesmo totalmente idiotas, especialmente no que concerne à política, emoções e relações humanas em geral:

"Kary suspeita que foi abduzido por um alienígena perto do rio Navarro, na Califórnia, após ter encontrado um ser estranho que tomou a forma de um guaxinim radiante de “olhos negros e sagazes”. Ele não consegue se lembrar do que aconteceu depois que “o desgraçado” o “cumprimentou educadamente” – na verdade, não se lembra de nada do que aconteceu pelo resto da noite. Mas tem a forte suspeita de que havia extraterrestres envolvidos. “Existem muitos mistérios no vale”, escreve ele, enigmático.

Kary também se dedica à astrologia. “A maioria dos cientistas tem a falsa impressão de que esse assunto não é científico e não pode ser estudado seriamente”, esbraveja. “Estão redondamente enganados.” Ele acha que essa é a chave para melhores tratamentos de saúde mental e que todos que discordam “têm minhocas na cabeça”. Além de crer em ETs e signos do zodíaco, Kary acredita que as pessoas podem viajar através do éter, no plano astral.

A coisa fica ainda mais bizarra quando Kary começa a falar de política. “Algumas grandes verdades em que os eleitores acreditam não têm nenhuma base científica”, afirma. Entre elas, “a crença de que a aids é causada pelo vírus HIV” e “a crença de que a liberação de gás CFC na atmosfera criou um buraco na camada de ozônio”.

Nem é preciso dizer que essas ideias são praticamente consensuais entre os cientistas. Ainda assim, Kary relata aos seus leitores que elas são motivadas pelo dinheiro.

Espero não ter que esclarecer para você que Kary está errado.

Como se sabe, a internet está repleta de pessoas com opiniões infundadas, mas não esperamos que astrólogos e negacionistas da aids representem o suprassumo da intelectualidade.

No entanto, o nome completo de Kary é Kary Mullis e, longe de preencher o estereótipo de teórico da conspiração mal informado, ele é um cientista ganhador do Prêmio Nobel. Isso o situa ao lado de nomes como Marie Curie, Albert Einstein e Francis Crick.

Mullis ganhou o prêmio por ter inventado a reação em cadeia da polimerase – técnica que permite aos cientistas clonar DNA em grandes quantidades. Aparentemente, a ideia surgiu num lampejo de inspiração que ele teve numa estrada no condado de Mendocino, na Califórnia. Muitas das maiores conquistas das últimas décadas, incluindo o Projeto Genoma Humano, decorreram desse momento singular de puro brilhantismo. A descoberta é tão importante que alguns cientistas chegam a dividir a pesquisa biológica em duas eras: antes e depois de Mullis.

Não resta dúvida de que Mullis, doutor pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, é extraordinariamente inteligente. Sua invenção é resultado de uma vida inteira dedicada a entender processos incrivelmente complexos dentro de nossas células.

Mas será que o mesmo gênio que permitiu a Mullis fazer essa descoberta impressionante poderia explicar sua crença em alienígenas e seu negacionismo em relação à aids? Será que seu grande intelecto também pode tê-lo tornado incrivelmente estúpido?" [...]

Existe uma discussão inicial sobre a armadilha da inteligência no julgamento de Sócrates, em 399 a.C.

Segundo o relato de Platão, os acusadores de Sócrates alegavam que ele estaria corrompendo a juventude ateniense com ideias “ímpias” e maléficas. Sócrates negou as acusações e reagiu explicando as origens de sua reputação de sábio e afirmando que as acusações eram motivadas por ciúme. Tudo começou, disse ele, quando o Oráculo de Delfos declarou que ninguém em Atenas era mais sábio que ele. “O que o deus pode estar dizendo? É um enigma: o que será que significa?”, perguntou-se Sócrates. “Não sei se sou um sábio em qualquer aspecto, seja ele grande ou pequeno.”

A solução de Sócrates foi vagar pela cidade procurando os mais respeitados políticos, poetas e artesãos para provar que o oráculo estava errado, mas se decepcionava a cada tentativa. “Como eram talentosos na prática das suas habilidades, cada um deles alegava que também era o mais sábio em outras coisas: os mais importantes nisso e naquilo. E pareceu-me que esse erro deles obscurecia a sabedoria que tinham […]

Na verdade, aqueles com mais reputação me pareciam os mais deficientes, enquanto outros supostamente inferiores pareciam mais dotados de bom senso.”

A conclusão de Sócrates é paradoxal: ele é sábio precisamente porque reconheceu os limites de seu conhecimento. No entanto, o júri o considerou culpado e ele foi condenado à morte.

Os paralelos com a pesquisa científica recente são impressionantes. Substitua os políticos, poetas e artesãos de Sócrates pelos engenheiros, banqueiros, médicos de hoje (e todos os demais profissionais de fato inteligentes e indispensáveis para a sociedade em suas áreas, assim como apontou José Ortega y Gasset), e ficará claro que o julgamento do filósofo capta de forma quase perfeita os pontos cegos que os psicólogos estão descobrindo agora.".  Trecho do livro "Por que pessoas inteligentes cometem erros idiotas?", de David Robson (2021).


.  Romero Maia - Instagram: @SimpliciDados

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